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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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pela atitude dos cientistas, que, na medida em que procedem realmente de modo

científico, sabem muitíssimo bem que suas “verdades” nunca são conclusivas e

estão continuamente sofrendo revisões radicais pela pesquisa existente.

Apesar da diferença entre as noções de possuir a verdade e estar certo, estes

dois pontos de vista têm algo em comum: os que assumem um ou outro

geralmente não estão preparados, em caso de conflito, para sacrificar seu ponto

de vista à humanidade ou à amizade. Realmente acreditam que, se o fizessem,

estariam violando um dever superior, o dever da “objetividade”; de modo que,

mesmo que ocasionalmente realizem tal sacrifício, não se sentem agir por

consciência e, pelo contrário, até se envergonham de sua humanidade e muitas

vezes se sentem nitidamente culpados por isso. Em termos da época em que

vivemos, e em termos das muitas opiniões dogmáticas que dominam nosso

pensamento, podemos traduzir o conflito de Lessing num conflito mais próximo

à nossa experiência, mostrando sua aplicação aos doze anos e à ideologia

dominante do Terceiro Reich. Por ora, deixemos de lado o fato de que a doutrina

racial nazista é de princípio indemonstrável, pois contradiz a “natureza” do

homem. (De passagem, vale notar que essas teorias “científicas” não foram

invenção dos nazistas, nem mesmo invenção especificamente alemã.) Mas

suponhamos por ora que as teorias raciais tenham sido provadas de forma

convincente. Pois não se pode negar que as conclusões políticas práticas que os

nazistas extraíram dessas teorias eram perfeitamente lógicas. Suponhamos que

uma raça realmente se mostrasse inferior, por evidências científicas indubitáveis;

esse fato justificaria seu extermínio? Mas a resposta a essa pergunta ainda é

muito fácil, pois podemos invocar o “Não matarás” que efetivamente tornou-se o

mandamento fundamental a governar o pensamento legal e moral do Ocidente

desde a vitória do cristianismo sobre a antiguidade. Mas em termos de um

pensamento não governado por restrições legais, morais ou religiosas — e o

pensamento de Lessing era tão desimpedido, tão “vivo e mutável” quanto aquele

—, a pergunta teria de ser colocada assim: Tal doutrina, mesmo que

convincentemente demonstrada, valerá o sacrifício de uma única amizade que

seja entre dois homens?

Assim retornamos ao meu ponto de partida, à espantosa falta de “objetividade”

no polemismo de Lessing, à sua parcialidade sempre atenta, que nada tem a ver

com a subjetividade, pois vem sempre montada não em termos do eu, mas em

termos da relação dos homens com seu mundo, em termos de suas posições e

opiniões. Lessing não teria sentido nenhuma dificuldade em responder à

pergunta que acabei de formular. Nenhuma avaliação da natureza do islamismo,

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