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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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relatividade fundamental. A inumanidade ligada ao conceito de uma verdade

única surge com especial clareza na obra de Kant justamente por ter tentado

encontrar a verdade na razão prática; é como se ele, que indicara tão

inexoravelmente os limites cognitivos do homem, não conseguisse suportar a

idéia de que, também na ação, o homem não pode se comportar como um deus.

Lessing, porém, se regozijava com o que sempre — ou pelo menos desde

Parmênides e Platão — atormentou os filósofos: a verdade, tão logo enunciada,

imediatamente se transforma numa opinião entre muitas outras, é contestada,

reformulada, reduzida a um tema de discurso entre outros. A grandeza de

Lessing não consiste meramente na percepção teórica de que não pode existir

uma verdade única no mundo humano, mas sim na sua alegria de que realmente

ela não exista e, portanto, enquanto os homens existirem, o discurso interminável

entre eles nunca cessará. Uma única verdade absoluta, se pudesse existir, seria a

morte de todas aquelas discussões onde esse ancestral e mestre de todo o

polemismo em língua alemã se sentia tão à vontade e sempre tomava partido

com a máxima clareza e definição. E isso teria significado o fim da humanidade.

Hoje em dia, é difícil para nós identificarmo-nos com o conflito dramático,

mas não trágico, de Nathan, o Sábio, tal como Lessing pretendera. Isso em parte

porque, em relação à verdade, tornou-se corriqueiro comportarmo-nos com

tolerância, embora por razões que dificilmente têm alguma ligação como as de

Lessing. Atualmente, uma pessoa ainda pode colocar a questão, pelo menos ao

estilo da parábola dos três anéis de Lessing — como, por exemplo, no magnífico

pronunciamento de Kafka: “É difícil dizer a verdade pois, embora exista apenas

uma verdade, ela está viva e tem, portanto, uma face viva e mutável”. Mas aqui,

também, nada se diz a respeito do ponto político da antinomia de Lessing — isto

é, o possível antagonismo entre verdade e humanidade. Além do mais, hoje em

dia é raro encontrar gente que acredite possuir a verdade; ao invés disso,

deparamo-nos constantemente com os que estão seguros de estarem certos. A

diferença é básica; a questão da verdade no tempo de Lessing ainda era uma

questão filosófica e religiosa, ao passo que nosso problema de estarmos certos

surge no interior da ciência e é sempre decidido por um modo de pensamento

orientado para a ciência. Ao dizê-lo, deixo de lado a questão de se essa alteração

nas formas de pensamento mostrou-se benéfica ou perniciosa para nós. O fato

simples é que mesmo os homens inteiramente incapazes de avaliar os aspectos

especificamente científicos de um argumento são tão fascinados pela certeza

científica como os homens do século xviii o eram pela questão da verdade. E de

modo bastante estranho, os homens modernos não se desviam de seu fascínio

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