Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
horrível ou o misterioso — pode encontrar uma voz humana com a qual ressoeno mundo, mas não é exatamente humano. Humanizamos o que ocorre nomundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos aser humanos.Os gregos chamavam essa qualidade humana que se realiza no discurso daamizade de philanthropia, “amor dos homens”, pois se manifesta numa prestezaem partilhar o mundo com outros homens. Seu oposto, a misantropia, significasimplesmente que o misantropo não encontra ninguém com quem trate departilhar o mundo, não considera ninguém digno de se regozijar com ele nomundo, na natureza e no cosmo. A filantropia grega sofreu muitas alterações aose converter na humanitas romana. A mais importante delas correspondeu aofato político de que, em Roma, pessoas com origens e descendência étnicasmuito diferentes podiam adquirir a cidadania romana e, assim, chegar aodiscurso entre romanos cultos, podendo discutir com eles o mundo e a vida. Eessa base política diferencia a humanitas romana daquilo que os modernoschamam de humanidade, pelo que comumente entendem um simples efeito deeducação.Que qualidade humana deve ser sóbria e serena, ao invés de sentimental; que ahumanidade se exemplifica não na fraternidade, mas na amizade; que a amizadenão é intimamente pessoal, mas faz exigências políticas e preserva a referênciaao mundo — tudo isso nos parece tão exclusivamente característico daantiguidade clássica que até nos surpreendemos ao encontrar traçosabsolutamente análogos em Nathan, o Sábio — que, moderno como é, poderiacom alguma justiça ser considerado o drama clássico da amizade. O que nosparece tão estranho na peça é o “Devemos, devemos ser amigos”, com queNathan se volta para o Templário e, de fato, para todas as pessoas que encontra;pois essa amizade é obviamente muitíssimo mais importante para Lessing que apaixão do amor, a ponto de poder cortar rente e bruscamente a história de amor(os amantes, o Templário e Recha, filha adotiva de Nathan, vêm a ser irmão eirmã) e transformá-la numa relação onde se exige a amizade e se exclui o amor.A tensão dramática da peça encontra-se exclusivamente no conflito que surgeentre a amizade e humanidade e a verdade. O fato talvez surpreenda os homensmodernos, como ainda mais estranho, mas está curiosamente próximo, uma vezmais, aos princípios e conflitos que interessavam à antiguidade clássica. No fim,depois de tudo, a sabedoria de Nathan consiste apenas em sua presteza parasacrificar a verdade à amizade.Lessing tinha opiniões altamente não ortodoxas a respeito da verdade.
Recusava-se a aceitar quaisquer verdades, mesmo as presumivelmente enviadaspela Providência, e nunca se sentiu compelido pela verdade, fosse ela impostapelos processos de raciocínio seus ou de outras pessoas. Se fosse confrontado àalternativa platônica entre a doxa e a aletheia, a opinião ou a verdade, não hádúvida sobre qual teria sido sua decisão. Estava contente que — para usar suaparábola — o anel verdadeiro, se é que algum dia existira, se perdera; estavacontente em consideração pelo número infinito de opiniões que surgem quandoos homens discutem os assuntos deste mundo. Se o verdadeiro anel existisse,significaria o fim do discurso, e portanto da amizade, e portanto da humanidade.Por essas mesmas razões, estava contente em pertencer à raça dos “deuseslimitados”, como ocasionalmente chamava os homens; e julgava que a sociedadehumana não era de forma alguma prejudicada por aqueles “que têm maistrabalho em formar do que em dissipar as nuvens”, ao passo que incorria em“muito dano por parte daqueles que desejam sujeitar todos os modos de pensardos homens ao jugo do seu próprio”. Isso tem muito pouco a ver com atolerância em sentido habitual (de fato, Lessing não era de forma alguma umapessoa especialmente tolerante), mas muitíssimo com o dom da amizade, com aabertura ao mundo e, finalmente, com o verdadeiro amor à humanidade.O tema dos “deuses limitados”, das limitações do entendimento humano,limitações que podem ser indicadas e assim transcendidas pela razãoespeculativa, posteriormente se tornou o grande objeto das críticas de Kant. Mas,apesar do que possa haver de comum entre as atitudes de Kant e Lessing — e defato havia muito —, os dois pensadores diferiam num ponto decisivo. Kantcompreendeu que não pode haver nenhuma verdade absoluta para o homem,pelo menos no sentido teórico. Certamente estaria preparado para sacrificar averdade à possibilidade da liberdade humana pois, se possuíssemos a verdade,não poderíamos ser livres. Mas dificilmente concordaria com Lessing que averdade, se existisse, poderia ser sacrificada sem hesitações à humanidade, àpossibilidade de amizade e discurso entre os homens. Kant sustentava que existeum absoluto, o dever do imperativo categórico que se situa acima dos homens,decisivo em todos os assuntos humanos e não pode ser infringido mesmo para obem da humanidade, em todos os sentidos do termo. Críticos da ética kantianamuitas vezes denunciaram essa tese como totalmente inumana e inclemente.Quaisquer que sejam os méritos de seus argumentos, a inumanidade da filosofiamoral de Kant é inegável. E isso porque o imperativo categórico é postuladocomo absoluto e, em sua absolutez, introduz no âmbito inter-humano — que, porsua natureza, consiste em relações — algo que ocorre em sentido contrário à sua
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horrível ou o misterioso — pode encontrar uma voz humana com a qual ressoe
no mundo, mas não é exatamente humano. Humanizamos o que ocorre no
mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos a
ser humanos.
Os gregos chamavam essa qualidade humana que se realiza no discurso da
amizade de philanthropia, “amor dos homens”, pois se manifesta numa presteza
em partilhar o mundo com outros homens. Seu oposto, a misantropia, significa
simplesmente que o misantropo não encontra ninguém com quem trate de
partilhar o mundo, não considera ninguém digno de se regozijar com ele no
mundo, na natureza e no cosmo. A filantropia grega sofreu muitas alterações ao
se converter na humanitas romana. A mais importante delas correspondeu ao
fato político de que, em Roma, pessoas com origens e descendência étnicas
muito diferentes podiam adquirir a cidadania romana e, assim, chegar ao
discurso entre romanos cultos, podendo discutir com eles o mundo e a vida. E
essa base política diferencia a humanitas romana daquilo que os modernos
chamam de humanidade, pelo que comumente entendem um simples efeito de
educação.
Que qualidade humana deve ser sóbria e serena, ao invés de sentimental; que a
humanidade se exemplifica não na fraternidade, mas na amizade; que a amizade
não é intimamente pessoal, mas faz exigências políticas e preserva a referência
ao mundo — tudo isso nos parece tão exclusivamente característico da
antiguidade clássica que até nos surpreendemos ao encontrar traços
absolutamente análogos em Nathan, o Sábio — que, moderno como é, poderia
com alguma justiça ser considerado o drama clássico da amizade. O que nos
parece tão estranho na peça é o “Devemos, devemos ser amigos”, com que
Nathan se volta para o Templário e, de fato, para todas as pessoas que encontra;
pois essa amizade é obviamente muitíssimo mais importante para Lessing que a
paixão do amor, a ponto de poder cortar rente e bruscamente a história de amor
(os amantes, o Templário e Recha, filha adotiva de Nathan, vêm a ser irmão e
irmã) e transformá-la numa relação onde se exige a amizade e se exclui o amor.
A tensão dramática da peça encontra-se exclusivamente no conflito que surge
entre a amizade e humanidade e a verdade. O fato talvez surpreenda os homens
modernos, como ainda mais estranho, mas está curiosamente próximo, uma vez
mais, aos princípios e conflitos que interessavam à antiguidade clássica. No fim,
depois de tudo, a sabedoria de Nathan consiste apenas em sua presteza para
sacrificar a verdade à amizade.
Lessing tinha opiniões altamente não ortodoxas a respeito da verdade.