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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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iv

O exemplo da amizade, que levantei por me parecer, por uma série de razões,

particularmente pertinente à questão da humanidade, reconduz-nos a Lessing.

Como bem se sabe, os antigos consideravam os amigos indispensáveis à vida

humana, e na verdade uma vida sem amigos não era realmente digna de ser

vivida. Ao sustentar esse ponto de vista, pouca consideração davam à idéia de

precisarmos da ajuda de amigos nos momentos de infortúnio; pelo contrário,

antes achavam que não pode haver felicidade ou boa sorte para a pessoa, a não

ser que tenha um amigo com que partilhar sua alegria. É claro que existe

também a máxima segundo a qual é apenas no infortúnio que descobrimos os

verdadeiros amigos; mas os que consideramos nossos verdadeiros amigos, sem

tais demonstrações, são em geral as pessoas a quem revelamos sem hesitar nossa

felicidade e de quem esperamos que compartilhem de nosso regozijo.

Estamos habituados a ver a amizade apenas como um fenômeno da intimidade,

onde os amigos abrem mutuamente seus corações sem serem perturbados pelo

mundo e suas exigências. Rousseau, e não Lessing, é o melhor defensor dessa

concepção, que se conforma tão bem com a atitude básica do indivíduo moderno

que, em sua alienação do mundo, realmente só pode se revelar na privacidade e

intimidade dos encontros pessoais. Portanto, é-nos difícil entender a relevância

política da amizade. Quando, por exemplo, lemos em Aristóteles que a philia, a

amizade entre os cidadãos, é um dos requisitos fundamentais para o bem-estar da

Cidade, tendemos a achar que ele se referia apenas à ausência de facções e

guerra civil. Mas, para os gregos, a essência da amizade consistia no discurso.

Sustentavam que apenas o intercâmbio constante de conversas unia os cidadãos

numa polis. No discurso, tornavam-se manifestas a importância política da

amizade e a qualidade humana própria a ela. Essa conversa (em contraste com a

conversa íntima onde os indivíduos falam sobre si mesmos), ainda que talvez

permeada pelo prazer com a presença do amigo, refere-se ao mundo comum, que

se mantém “inumano” num sentido muito literal, a menos que seja

constantemente comentado por seres humanos. Pois o mundo não é humano

simplesmente por ser feito por seres humanos, e nem se torna humano

simplesmente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se tornou

objeto de discurso. Por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo, por

mais profundamente que possam nos instigar e estimular, só se tornam humanas

para nós quando podemos discuti-las com nossos companheiros. Tudo o que não

possa se converter em objeto de discurso — o realmente sublime, o realmente

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