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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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profundamente pessoal, mas em algo mais, que brota da privacidade como tal, é

inerente ao mundo de que fugiram. Devem se lembrar que estão constantemente

no fluxo, e que a realidade do mundo se expressa efetivamente com sua fuga.

Assim, também, a verdadeira força do escapismo brota da perseguição, e a força

pessoal dos fugitivos cresce à medida que crescem a perseguição e o perigo.

Ao mesmo tempo, não podemos deixar de ver a limitada relevância política de

tal existência, mesmo mantida em sua pureza. Seus limites são inerentes ao fato

de que a força e o poder não constituem a mesma coisa; o poder surge apenas

onde as pessoas agem em conjunto, mas não onde as pessoas se fortalecem como

indivíduos. Nenhuma força jamais é grande o suficiente para substituir o poder;

onde quer que a força se confronte com o poder, ela sempre sucumbirá. Mas

mesmo a simples força para escapar e resistir durante a fuga não pode se

materializar lá onde a realidade é esquecida ou deixada de lado — como quando

um indivíduo se julga bom e nobre demais para se opor a tal mundo, ou quando

não consegue encarar a absoluta “negatividade” das condições predominantes do

mundo numa determinada época. Como era tentador, por exemplo, simplesmente

ignorar o falastrão insuportavelmente estúpido dos nazistas. Mas por mais

sedutor que possa ser render-se a tais tentações e isolar-se em sua própria psique,

o resultado sempre será uma perda do humano junto com a deserção da

realidade.

Assim, no caso de uma amizade entre um alemão e um judeu, sob as condições

do Terceiro Reich, dizer “não somos ambos seres humanos?” dificilmente seria

um sinal de humanidade para os amigos. Teria sido simples evasão da realidade

e do mundo comuns a ambos naquele momento; não estariam resistindo ao

mundo tal como era. Uma lei que proibisse o intercurso entre judeus e alemães

podia ser evitada, mas não desafiada por pessoas que negassem a realidade dessa

diferenciação. Mantendo uma humanidade que não perdera o terreno sólido da

realidade, uma humanidade em meio à realidade da perseguição, teriam de se

dizer: “Um alemão e um judeu, e amigos”. Mas onde quer que tal amizade

naquela época (evidentemente, a situação hoje em dia se alterou por completo)

tenha existido e mantido sua pureza, isto é, sem falsos complexos de culpa de

um lado e falsos complexos de superioridade ou inferioridade do outro,

alcançou-se um pouco de humanidade num mundo que se tornara inumano.

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