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não alivia nenhum sofrimento; ela não domina nada de uma vez por todas. Ao
invés disso, enquanto o sentido dos acontecimentos permanecer vivo — e esse
sentido pode persistir por longuíssimos períodos de tempo —, o “domínio do
passado” pode assumir a forma da narração sempre repetida. O poeta, num
sentido muito geral, e o historiador, num sentido muito específico, têm a tarefa
de acionar esse processo narrativo e de envolver-nos nele. E nós que, na maioria,
não somos nem poetas nem historiadores estamos familiarizados com a natureza
desse processo, a partir de nossa própria experiência de vida, pois também nós
temos a necessidade de rememorar os acontecimentos significativos em nossas
vidas, relatando-os a nós mesmos e a outros. Assim estamos constantemente
preparando o caminho para a “poesia”, no sentido mais amplo, como
potencialidade humana; estamos constantemente à espera, por assim dizer, de
que ela irrompa em algum ser humano. Quando isso ocorre, o relato do ocorrido
aí se detém e uma narrativa composta, um parágrafo a mais, acrescenta-se aos
recursos do mundo. Retificada pelo poeta ou pelo historiador, a narração da
história obteve permanência e estabilidade. Assim a narrativa recebeu seu lugar
no mundo, onde sobreviverá a nós. Lá ela pode subsistir — uma estória entre
muitas. Não há nenhum sentido para essas estórias que lhes seja inteiramente
destacável — e isso também sabemos por nossa experiência pessoal não poética.
Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por mais profundos que
sejam, podem se comparar em intensidade e riqueza de sentido a uma estória
contada adequadamente.
Pareço ter me desviado do meu assunto. A questão é: quanta realidade se deve
reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a
humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? Ou, para colocá-la
de outra forma, em que medida ainda temos alguma obrigação para com o
mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele? Pois certamente
não pretendo afirmar que a “emigração interna”, a fuga do mundo para a
ocultação, da vida pública para o anonimato (pois é isso que realmente ocorria, e
não simplesmente um pretexto para fazer o que todos faziam com reservas
íntimas suficientes para salvar sua consciência pessoal), não era uma atitude
justificada e, em muitos casos, a única possível. A fuga do mundo em tempos
sombrios de impotência sempre pode ser justificada, na medida em que não se
ignore a realidade, mas é constantemente reconhecida como algo a ser evitado.
Quando as pessoas escolhem essa alternativa, a vida privada também pode reter
uma realidade de modo algum insignificante, embora impotente. É-lhes apenas
essencial que compreendam que o real dessa realidade consiste não em seu tom