23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

não alivia nenhum sofrimento; ela não domina nada de uma vez por todas. Ao

invés disso, enquanto o sentido dos acontecimentos permanecer vivo — e esse

sentido pode persistir por longuíssimos períodos de tempo —, o “domínio do

passado” pode assumir a forma da narração sempre repetida. O poeta, num

sentido muito geral, e o historiador, num sentido muito específico, têm a tarefa

de acionar esse processo narrativo e de envolver-nos nele. E nós que, na maioria,

não somos nem poetas nem historiadores estamos familiarizados com a natureza

desse processo, a partir de nossa própria experiência de vida, pois também nós

temos a necessidade de rememorar os acontecimentos significativos em nossas

vidas, relatando-os a nós mesmos e a outros. Assim estamos constantemente

preparando o caminho para a “poesia”, no sentido mais amplo, como

potencialidade humana; estamos constantemente à espera, por assim dizer, de

que ela irrompa em algum ser humano. Quando isso ocorre, o relato do ocorrido

aí se detém e uma narrativa composta, um parágrafo a mais, acrescenta-se aos

recursos do mundo. Retificada pelo poeta ou pelo historiador, a narração da

história obteve permanência e estabilidade. Assim a narrativa recebeu seu lugar

no mundo, onde sobreviverá a nós. Lá ela pode subsistir — uma estória entre

muitas. Não há nenhum sentido para essas estórias que lhes seja inteiramente

destacável — e isso também sabemos por nossa experiência pessoal não poética.

Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por mais profundos que

sejam, podem se comparar em intensidade e riqueza de sentido a uma estória

contada adequadamente.

Pareço ter me desviado do meu assunto. A questão é: quanta realidade se deve

reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a

humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? Ou, para colocá-la

de outra forma, em que medida ainda temos alguma obrigação para com o

mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele? Pois certamente

não pretendo afirmar que a “emigração interna”, a fuga do mundo para a

ocultação, da vida pública para o anonimato (pois é isso que realmente ocorria, e

não simplesmente um pretexto para fazer o que todos faziam com reservas

íntimas suficientes para salvar sua consciência pessoal), não era uma atitude

justificada e, em muitos casos, a única possível. A fuga do mundo em tempos

sombrios de impotência sempre pode ser justificada, na medida em que não se

ignore a realidade, mas é constantemente reconhecida como algo a ser evitado.

Quando as pessoas escolhem essa alternativa, a vida privada também pode reter

uma realidade de modo algum insignificante, embora impotente. É-lhes apenas

essencial que compreendam que o real dessa realidade consiste não em seu tom

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!