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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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surgisse uma obra de arte que apresentasse a verdade íntima do acontecimento

de um modo tão transparente que se podia dizer: Sim, é como foi. E nessa

novela, A fable [Uma fábula] de William Faulkner, descreve-se muito pouco,

explica-se menos ainda e não se “domina” absolutamente nada; seu final são

lágrimas, pranteadas também pelo leitor, e o que permanece para além disso é o

“efeito trágico” ou o “prazer trágico”, a emoção em estilhaços que permite à

pessoa aceitar o fato de que realmente poderia ter ocorrido algo como aquela

guerra. Menciono deliberadamente a tragédia porque, mais que as outras formas

literárias, representa um processo de reconhecimento. O herói trágico se torna

cognoscível por reexperimentar o que se fez sob o sofrimento, e nesse pathos, ao

novamente sofrer o passado, a rede de atos individuais se transforma num

acontecimento, num todo significativo. O clímax dramático da tragédia ocorre

quando o ator se converte num sofredor; aí reside sua peripatéia, a revelação do

desfecho. Mas mesmo enredos não trágicos se tornam autênticos acontecimentos

apenas quando são experimentados uma segunda vez, sob a forma de sofrimento,

com a memória operando retrospectiva e perceptivamente. Tal memória só pode

falar quando a indignação e a justa cólera, que nos impelem à ação, foram

silenciadas — e isso demanda tempo. Não podemos dominar o passado mais do

que desfazê-lo. Mas podemos nos reconciliar com ele. A forma para tal é o

lamento, que brota de toda recordação. É, como disse Goethe (na Dedicatória de

Fausto):

Der Schmerz wird neu, es wiederholt die Klage

Des Lebens labyrinthisch irren Lauf.

[A dor se renova, o lamento repete

O errante curso labiríntico da vida.]

O impacto trágico dessa repetição em lamento afeta um dos elementos-chave

de toda ação; estabelece seu sentido e aquele significado permanente que então

entra para a história. Em contraposição a outros elementos particulares da ação

— sobretudo os objetivos postulados, os motivos impulsionadores e os

princípios de orientação que se tornam todos eles visíveis no curso da ação —, o

sentido de um ato executado se revela apenas quando a própria ação já se

encerrou e se tornou uma estória suscetível de narração. Tanto quanto seja

possível algum “domínio” do passado, ele consiste em relatar o que aconteceu;

mas essa narração, que molda a história, tampouco resolve qualquer problema e

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