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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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sociais aos quais a igualdade é denegada.

Enquanto modo de ser, Hannah Arendt sempre se sentiu constrangida em ser

tida como uma mulher excepcional. A posição de exceção lembrava-a da

situação de alguns judeus na sociedade européia do século xx, que ela estudou

em As origens do totalitarismo: os parvenus do dinheiro ou da cultura, que se

valiam da atração exótica que provocavam como meio de mobilidade social. Ao

ser convidada para professor-titular em Princeton, em 1959 — a primeira mulher

a ser considerada por essa universidade —, quando lhe perguntaram o que sentia,

reagiu respondendo: “Não me perturba ser uma mulher professora porque estou

bem acostumada a ser mulher”. No caso, ser mulher também significava um

grande talento culinário e o gosto de cozinhar.

Hannah Arendt tinha, no campo dos mores, a abertura de quem viveu em

Berlim na época da República de Weimar. Sempre discreta nesses assuntos,

revelou, privadamente, uma simpatia e uma boa vontade não convencional para

com a vida e os amores mais complexos do seu círculo de amigos e até mesmo,

embora com algumas nuvens, do seu próprio marido.

Os anos, as enfermidades e a morte dos amigos, que ela definiu como uma

desfolhação do mundo, levaram Hannah Arendt a refletir sobre o tema da

velhice. Irritou-se com os escritos de Simone de Beauvoir, que apenas

lamentavam a decadência física, e pensava escrever um novo De senectute, no

qual pretendia descrever a harmonia das faculdades mentais na velhice. No

entender de Cícero, em quem Hannah Arendt imaginava apoiar-se, os grandes

feitos são produto do pensamento, do caráter e do juízo — qualidade que os anos

fazem aumentar. Essa ponderação ciceroniana ela viu confirmada na atuação do

senador Sam Erwin, por ocasião da crise de Watergate, bem como na

independência da Suprema Corte norte-americana durante o episódio.

Para Hannah Arendt a velhice é o tempo da meditação. Não é acidental, por

isso mesmo, que seu último livro tivesse sido uma volta à vida contemplativa e

um ajuste com a tradição filosófica da qual se originou. The life of the mind, que

cuida do pensar e do querer, é um livro incompleto, pois Hannah Arendt não

chegou a redigir o volume sobre o julgar. Ao realçar, no entanto, a independência

e a liberdade das três faculdades, o que comporta analogia com os poderes nos

regimes políticos descritos por Montesquieu, estava sem dúvida na busca das

precondições para o equilíbrio da mente. É uma pena que não tivesse elaborado

toda a constituição da República do Espírito, mas hoje temos também o

anteprojeto da parte referente ao juízo, graças à publicação, em 1982, editada por

Ronald Beiner, das suas Lectures on Kant’s political philosophy, dadas na

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