Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
A liberdade e a justiça, dizia Hannah Arendt no seu documento de 1942, são osprincípios da política. Esta, como condição de dignidade, exige a pluralidade erequer a rejeição da ação vista apenas como um processo de meios e fins. Comefeito, o entendimento da ação como um jogo de meios e fins estrutura umarelação manipulativa, que aguça interações do tipo dominantes-dominados eprovoca nas lideranças, mesmo nas melhores, uma perda do senso comum. Osenso comum só pode subsistir, na lição arendtiana, num compartilhado emcomum, pela livre discussão.Young-Bruehl também esclarece como a vida de Hannah Arendt determinou asua atitude básica em prol dos “humilhados e ofendidos”. É, sem dúvida, aexperiência pessoal da jovem Hannah: que enfrentou sérias dificuldadeseconômicas nos anos 1930 e 1940; que converteu, em 1933, o seu apartamentoem Berlim num ponto de apoio para a fuga de opositores, em grande partecomunistas, do regime nazista; que foi presa pela polícia alemã em 1933 porsuas atividades ilegais na coleta, para o movimento sionista, de informaçõessobre o anti-semitismo na sociedade alemã; que se tornou uma refugiada semtrabalho e sem documentos, uma interna no Campo de Gurs, na França, do qualfugiu para afinal escapar clandestinamente e chegar aos eua via Lisboa — o quesustenta a autenticidade da seguinte afirmação da pensadora: “Como o queescrevi pode chocar pessoas boas e ser distorcido pelas más, quero tornar claroque, como judia, a minha simpatia está não só com a causa dos negros, mastambém com a causa de todos os oprimidos e não privilegiados e apreciaria queo leitor disso tomasse conhecimento”.Essa afirmação de Hannah Arendt é a nota que abre seu artigo de 1957,“Reflexões sobre Little Rock”, antecipando a controvérsia que o artigo gerou eque foi provocada pelo fato de ter ela argumentado que não deveria ser a escola,mas sim as leis contra a miscigenação e a integração no transporte público, ositens prioritários da batalha pela incorporação igualitária dos negros do Sul doseua. Essa nota — uma rara revelação pública de experiência pessoal — ajusta-seperfeitamente, no meu entender, a toda a obra de Hannah Arendt: uma obrapolêmica, excepcionalmente criativa, não convencional, de difícil classificaçãomas de perspectivas generosas.
vHannah Arendt, como ela mesma disse, na já mencionada carta de 1963 aGershom Scholem, a propósito da polêmica em torno de seu livro sobreEichmann, não foi uma intelectual que teve a sua origem na esquerda alemã.Teve, no entanto, acesso privilegiado às experiências e às pessoas da esquerdaalemã.O primeiro marido de Hannah Arendt foi Günther Anders, com quem casouem 1929 e de quem se separou em 1936. Günther Anders — um intelectual detalento que se doutorou com Husserl e cujos projetos de carreira universitária,em Frankfurt, esbarraram na má vontade de Adorno — acabou se convertendoem jornalista incumbido da seção cultural do Börsen-Courrier, de Berlim, graçasao apoio inicial de Brecht. O círculo de amigos de Günther Anders em Berlimera integrado por artistas, jornalistas e intelectuais que gravitavam em torno doPartido Comunista. Esse círculo complementava os contatos de Hannah Arendt,que na época freqüentava os círculos sionistas onde era conhecida pela poucosionista alcunha de Palas Atenas. Datam de 1931 as primeiras leituras de HannahArendt de Marx e Trotski e o seu interesse pela cena contemporânea.Anders era primo distante de Walter Benjamin e o casal intensificou relaçõesquando já tinham saído da Alemanha e viviam todos em Paris. Andersapresentou Hannah Arendt a Brecht e a Arnold Zweig, e o casal, graças àamizade com Raymond Aron, freqüentou os célebres seminários de AlexandreKojève sobre Hegel na École de Hautes Études, onde conheceram Sartre, dequem nunca foram próximos, e Alexandre Koyré, que posteriormente tornou-segrande amigo de Hannah Arendt.Em 1936 Hannah Arendt começou a participar de um grupo de estudos depessoas formadas na escola marxista da teoria e da práxis. Esse grupo, quegeralmente se reunia no apartamento de Walter Benjamin, 10 Rue Dombasle,incluía, além do próprio Benjamin e ocasionalmente seus colegas, membros doInstitut für Sozialforschung, de Frankfurt: Erich Cohn-Bendit, advogado e pai dofamoso Daniel Cohn-Bendit da revolução estudantil francesa de maio de 1968; opsicanalista Fritz Fränkel; o pintor Karl Hendenreich; Chanan Kienbort, o únicojudeu da Europa oriental entre esses berlinenses, e Heinrich Blücher.É de 1936, depois da partida de Günther Anders para os eua, o início doromance de Hannah Arendt com Heinrich Blücher, que veio a ser o seu segundomarido e de quem enviuvou em 1970.Heinrich Blücher, ao contrário de Anders, não era escritor. Vinha de família
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A liberdade e a justiça, dizia Hannah Arendt no seu documento de 1942, são os
princípios da política. Esta, como condição de dignidade, exige a pluralidade e
requer a rejeição da ação vista apenas como um processo de meios e fins. Com
efeito, o entendimento da ação como um jogo de meios e fins estrutura uma
relação manipulativa, que aguça interações do tipo dominantes-dominados e
provoca nas lideranças, mesmo nas melhores, uma perda do senso comum. O
senso comum só pode subsistir, na lição arendtiana, num compartilhado em
comum, pela livre discussão.
Young-Bruehl também esclarece como a vida de Hannah Arendt determinou a
sua atitude básica em prol dos “humilhados e ofendidos”. É, sem dúvida, a
experiência pessoal da jovem Hannah: que enfrentou sérias dificuldades
econômicas nos anos 1930 e 1940; que converteu, em 1933, o seu apartamento
em Berlim num ponto de apoio para a fuga de opositores, em grande parte
comunistas, do regime nazista; que foi presa pela polícia alemã em 1933 por
suas atividades ilegais na coleta, para o movimento sionista, de informações
sobre o anti-semitismo na sociedade alemã; que se tornou uma refugiada sem
trabalho e sem documentos, uma interna no Campo de Gurs, na França, do qual
fugiu para afinal escapar clandestinamente e chegar aos eua via Lisboa — o que
sustenta a autenticidade da seguinte afirmação da pensadora: “Como o que
escrevi pode chocar pessoas boas e ser distorcido pelas más, quero tornar claro
que, como judia, a minha simpatia está não só com a causa dos negros, mas
também com a causa de todos os oprimidos e não privilegiados e apreciaria que
o leitor disso tomasse conhecimento”.
Essa afirmação de Hannah Arendt é a nota que abre seu artigo de 1957,
“Reflexões sobre Little Rock”, antecipando a controvérsia que o artigo gerou e
que foi provocada pelo fato de ter ela argumentado que não deveria ser a escola,
mas sim as leis contra a miscigenação e a integração no transporte público, os
itens prioritários da batalha pela incorporação igualitária dos negros do Sul dos
eua. Essa nota — uma rara revelação pública de experiência pessoal — ajusta-se
perfeitamente, no meu entender, a toda a obra de Hannah Arendt: uma obra
polêmica, excepcionalmente criativa, não convencional, de difícil classificação
mas de perspectivas generosas.