Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
o destino da humanidade. (Tal tese só poderia, no máximo, ser levantadaconvincentemente apenas no último estágio da dominação nazista, quando defato os judeus e o anti-semitismo estavam sendo explorados unicamente paradesencadear e manter em funcionamento o programa racista de extermínio. Poisisso foi parte essencial do governo totalitário. O movimento nazista certamentedesde o início tendera para o totalitarismo, mas o Terceiro Reich, durante seusprimeiros anos, não foi de forma alguma totalitário. Por “primeiros anos”,entendo o primeiro período, que se estendeu de 1933 a 1938.) Ao dizer “umjudeu”, tampouco me referia a uma realidade a que a história atribuíra ouindicara um mérito de distinção. Eu estava antes reconhecendo um fato políticopelo qual o fato de ser um membro desse grupo ultrapassava todas as outrasperguntas sobre a identidade pessoal ou, melhor, resolvia-as pela anonimidade,pela ausência de nome. Atualmente, tal atitude pareceria forçada. Atualmente,portanto, é fácil notar que os que reagiram dessa forma nunca avançaram muitona escola de “humanidade”, caíram na armadilha montada por Hitler e, assim,sucumbiram à sua maneira ao espírito do hitlerismo. Infelizmente, o princípiosimples e básico aqui em questão é particularmente difícil de ser compreendidoem tempos de difamação e perseguição: o princípio de que só se pode resistir nostermos da identidade que está sendo atacada. Os que rejeitam tais identificaçõespor parte de um mundo hostil podem se sentir maravilhosamente superiores aele, mas então sua superioridade na verdade não pertence mais a este mundo; é asuperioridade de uma região mais ou menos bem equipada de lunáticos nasnuvens.Portanto, quando revelo bruscamente a base pessoal de minhas reflexões, podefacilmente parecer, aos que só conhecem de ouvido o destino dos judeus, queestou falando de cátedra, numa escola que não freqüentaram e cujas lições nãolhes dizem respeito. Mas, de qualquer forma, durante o mesmíssimo período naAlemanha, existiu o fenômeno conhecido como a “emigração interna”, e quemconhece alguma coisa sobre essa experiência pode bem reconhecer, mais quenum simples sentido formal e estrutural, certas questões e conflitos próximos aosproblemas que mencionei. Como seu próprio nome sugere, a “emigraçãointerna” foi um fenômeno curiosamente ambíguo. De um lado, significava quehavia pessoas dentro da Alemanha que se comportavam como se não maispertencessem ao país, que se sentiam como emigrantes; por outro lado, indicavaque não haviam realmente emigrado, mas se retirado para um âmbito interior, nainvisibilidade do pensar e do sentir. Seria um erro imaginar que essa forma deexílio, essa retirada do mundo para um âmbito interior, existiu apenas na
Alemanha, assim como seria um erro imaginar que tal emigração cessou com ofim do Terceiro Reich. Mas naquele mais sombrio dos tempos, dentro e fora daAlemanha era particularmente forte, em face de uma realidade aparentementeinsuportável, a tentação de se desviar do mundo e de seu espaço público parauma vida interior, ou ainda simplesmente ignorar aquele mundo em favor de ummundo imaginário, “como deveria ser” ou como alguma vez fora.Tem havido muita discussão sobre a tendência generalizada na Alemanha dese agir como se os anos entre 1933 e 1945 nunca tivessem existido; como se essaparte da história alemã e européia, portanto mundial, pudesse ser eliminada doslivros escolares; como se tudo dependesse de esquecer o aspecto “negativo” dopassado e reduzir o horror à sentimentalidade. (O sucesso mundial de O diáriode Anne Frank foi uma prova clara de que tais tendências não se limitavam àAlemanha.) Era uma situação grotesca quando os jovens alemães estavamimpedidos de aprender os fatos que qualquer criança de escola, poucosquilômetros adiante, não podia deixar de saber. Por trás de tudo isso,evidentemente, havia uma perplexidade genuína. E essa própria incapacidade deencarar a realidade do passado poderia ser, possivelmente, uma herança direta daemigração interna, tal como foi indubitavelmente em grande medida, e aindamais direta, uma conseqüência do regime de Hitler — isto é, uma conseqüênciada culpa organizada em que os nazistas envolveram todos os habitantes dasterras alemãs, tanto os eLivross internos como os membros firmes e leais doPartido e os vacilantes companheiros de viagem. Foi o fato dessa culpa que osAliados simplesmente incorporaram na hipótese fatídica da culpa coletiva. Aíreside a razão do profundo embaraço dos alemães, que surpreende qualquerforasteiro, em qualquer discussão sobre questões do passado. A dificuldade emse encontrar uma atitude razoável talvez se expresse mais claramente como oclichê de que o passado ainda não foi “dominado” e na convicção, sustentadaprincipalmente por homens de boa vontade, de que a primeira coisa a se fazer étratar de “dominá-lo”. Talvez não se possa fazê-lo com nenhum passado, mascertamente com o passado da Alemanha hitlerista é impossível. O máximo quese pode alcançar é saber precisamente o que foi ele e suportar esseconhecimento, e então esperar para ver o que virá desse saber e desse suportar.Talvez eu possa explicá-lo melhor com um exemplo menos doloroso. Após aPrimeira Guerra Mundial, tivemos a experiência de “dominar o passado”, comuma enxurrada de descrições sobre a guerra, imensamente variadas em tipo equalidade; naturalmente, isso não ocorreu apenas na Alemanha, mas em todos ospaíses atingidos. Contudo, deveriam se passar quase trinta anos antes que
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Alemanha, assim como seria um erro imaginar que tal emigração cessou com o
fim do Terceiro Reich. Mas naquele mais sombrio dos tempos, dentro e fora da
Alemanha era particularmente forte, em face de uma realidade aparentemente
insuportável, a tentação de se desviar do mundo e de seu espaço público para
uma vida interior, ou ainda simplesmente ignorar aquele mundo em favor de um
mundo imaginário, “como deveria ser” ou como alguma vez fora.
Tem havido muita discussão sobre a tendência generalizada na Alemanha de
se agir como se os anos entre 1933 e 1945 nunca tivessem existido; como se essa
parte da história alemã e européia, portanto mundial, pudesse ser eliminada dos
livros escolares; como se tudo dependesse de esquecer o aspecto “negativo” do
passado e reduzir o horror à sentimentalidade. (O sucesso mundial de O diário
de Anne Frank foi uma prova clara de que tais tendências não se limitavam à
Alemanha.) Era uma situação grotesca quando os jovens alemães estavam
impedidos de aprender os fatos que qualquer criança de escola, poucos
quilômetros adiante, não podia deixar de saber. Por trás de tudo isso,
evidentemente, havia uma perplexidade genuína. E essa própria incapacidade de
encarar a realidade do passado poderia ser, possivelmente, uma herança direta da
emigração interna, tal como foi indubitavelmente em grande medida, e ainda
mais direta, uma conseqüência do regime de Hitler — isto é, uma conseqüência
da culpa organizada em que os nazistas envolveram todos os habitantes das
terras alemãs, tanto os eLivross internos como os membros firmes e leais do
Partido e os vacilantes companheiros de viagem. Foi o fato dessa culpa que os
Aliados simplesmente incorporaram na hipótese fatídica da culpa coletiva. Aí
reside a razão do profundo embaraço dos alemães, que surpreende qualquer
forasteiro, em qualquer discussão sobre questões do passado. A dificuldade em
se encontrar uma atitude razoável talvez se expresse mais claramente como o
clichê de que o passado ainda não foi “dominado” e na convicção, sustentada
principalmente por homens de boa vontade, de que a primeira coisa a se fazer é
tratar de “dominá-lo”. Talvez não se possa fazê-lo com nenhum passado, mas
certamente com o passado da Alemanha hitlerista é impossível. O máximo que
se pode alcançar é saber precisamente o que foi ele e suportar esse
conhecimento, e então esperar para ver o que virá desse saber e desse suportar.
Talvez eu possa explicá-lo melhor com um exemplo menos doloroso. Após a
Primeira Guerra Mundial, tivemos a experiência de “dominar o passado”, com
uma enxurrada de descrições sobre a guerra, imensamente variadas em tipo e
qualidade; naturalmente, isso não ocorreu apenas na Alemanha, mas em todos os
países atingidos. Contudo, deveriam se passar quase trinta anos antes que