Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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iMen in dark times (1968), que em francês foi publicado com o título Viespolitiques (1974), é um livro com características muito próprias no conjunto daobra de Hannah Arendt. De fato, esta tem, como nota básica, a preocupação comtemas — como por exemplo o totalitarismo, a revolução, a condição humana, aviolência — que ela examinou com muita originalidade, reelaborando conceitose criando categorias, graças a uma excepcional capacidade de reflexão abstrata apartir de fatos e situações concretas. Men in dark times, que ora se publica emportuguês pela iniciativa oportuna da Companhia das Letras, ao contrário, é umacoletânea de ensaios sobre pessoas. Lida com vidas tão díspares como foram asde Lessing e João xxiii, Rosa Luxemburgo e Karl Jaspers, Isak Dinesen e BertoltBrecht, Randall Jarrell e Walter Benjamin.Alguns dos ensaios que integram Homens em tempos sombrios, como os sobreJaspers e Heidegger, são evocações e depoimentos. Outros têm a dimensão deuma visão de conjunto de trajetórias. É o caso dos estudos sobre WalterBenjamin e Hermann Broch. Muitos são artigos que, partindo de biografias queHannah Arendt resenhou, deram-lhe a oportunidade de escrever sobre figurasque a fascinaram, como Rosa Luxemburgo e Isak Dinesen. Está, portanto, dentrodo espírito de seu livro traçar um perfil da própria Hannah Arendt a partir deuma biografia. É o que, tendo em vista o convite da Companhia das Letras paraescrever o posfácio à edição brasileira de Homens em tempos sombrios,proponho-me a fazer, retomando com ligeiras modificações o ensaio queelaborei sobre o belo livro de Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt: for loveof the world (New Haven, Yale University Press, 1982), que foi publicado no“Caderno de Programas e Leituras” do Jornal da Tarde de 28/8/1982, na RevistaBrasileira de Filosofia, vol. xxxii, fasc. 128 (out.-dez. 1982), e que também saiuem espanhol na revista Vuelta, dirigida por Octavio Paz (n o 73, dezembro de1982).

iiHannah Arendt gostava de contar histórias e eventos para, a partir deles,esclarecer conceitos e categorias. Não é fácil, no entanto, contar a história deHannah Arendt e, a partir dela, iluminar a sua obra, respeitando o ponto de vistaque ela consistentemente manifestou a respeito de biografias.Na introdução a Homens em tempos sombrios ela sublinha que suas análises— sobre como as vidas das pessoas a respeito das quais escreveu foram afetadaspela História — não obedecem à idéia de relatos sobre figuras que encarnamuma época, que são porta-vozes do Zeitgeist ou expoentes da História. Os relatosde Hannah Arendt não são também uma busca de mundos interiores. Aintrospecção, como ela diz no capítulo i de sua biografia de Rahel Varnhagen —importante personalidade do romantismo alemão — dissolve situações emestados de espírito e tende a conferir uma aura de objetividade ao subjetivo queconfunde as fronteiras entre o íntimo e o público. A discussão do íntimo,transposto para o domínio público, normalmente se transforma, de acordo comHannah Arendt, na trivialidade do mexerico. É por isso que os relatosarendtianos falam das pessoas no mundo, e não — como observa ElisabethYoung-Bruehl em trabalho anterior a esta biografia — dos mundos nas pessoas,buscando, através dessa fórmula, realçar a distinção entre o público e o privado,e sobretudo o predomínio e a importância do público, que é uma das notasimportantes da reflexão política de Hannah Arendt.Os perfis biográficos elaborados por Hannah Arendt não são, por outro lado,abstrações, mas sim relatos exemplares. Isto é perfeitamente compreensívelnuma intelectual que sempre teve o gosto pelo concreto. Numa pensadora quenão só admirava Duns Scotus — porque este insistia na importância do singulare aceitava a contingência enquanto o preço da liberdade —, como também via,na Crítica do juízo, de Kant, uma obra fundamental para a compreensão dapolítica, pois esta exige, na lição arendtiana, a faculdade mental do juízo,entendido como a capacidade de julgar o particular sem dissolvê-lo no geral.Qual seria então, na linha arendtiana, a razão pela qual alguém se dispõe aescrever uma biografia, ou seja, para começar etimologicamente, a propor porescrito uma vida? A ação e o discurso são, de acordo com Hannah Arendt, osmodos pelos quais os seres humanos se revelam uns aos outros na teia dasrelações intersubjetivas. Explica ela, no capítulo v de A condição humana, comoas histórias, resultando da ação e do discurso, desvendam um sujeito. Ninguém éo autor de sua própria vida, mas sim seu sujeito — na dupla acepção da palavra.

ii

Hannah Arendt gostava de contar histórias e eventos para, a partir deles,

esclarecer conceitos e categorias. Não é fácil, no entanto, contar a história de

Hannah Arendt e, a partir dela, iluminar a sua obra, respeitando o ponto de vista

que ela consistentemente manifestou a respeito de biografias.

Na introdução a Homens em tempos sombrios ela sublinha que suas análises

— sobre como as vidas das pessoas a respeito das quais escreveu foram afetadas

pela História — não obedecem à idéia de relatos sobre figuras que encarnam

uma época, que são porta-vozes do Zeitgeist ou expoentes da História. Os relatos

de Hannah Arendt não são também uma busca de mundos interiores. A

introspecção, como ela diz no capítulo i de sua biografia de Rahel Varnhagen —

importante personalidade do romantismo alemão — dissolve situações em

estados de espírito e tende a conferir uma aura de objetividade ao subjetivo que

confunde as fronteiras entre o íntimo e o público. A discussão do íntimo,

transposto para o domínio público, normalmente se transforma, de acordo com

Hannah Arendt, na trivialidade do mexerico. É por isso que os relatos

arendtianos falam das pessoas no mundo, e não — como observa Elisabeth

Young-Bruehl em trabalho anterior a esta biografia — dos mundos nas pessoas,

buscando, através dessa fórmula, realçar a distinção entre o público e o privado,

e sobretudo o predomínio e a importância do público, que é uma das notas

importantes da reflexão política de Hannah Arendt.

Os perfis biográficos elaborados por Hannah Arendt não são, por outro lado,

abstrações, mas sim relatos exemplares. Isto é perfeitamente compreensível

numa intelectual que sempre teve o gosto pelo concreto. Numa pensadora que

não só admirava Duns Scotus — porque este insistia na importância do singular

e aceitava a contingência enquanto o preço da liberdade —, como também via,

na Crítica do juízo, de Kant, uma obra fundamental para a compreensão da

política, pois esta exige, na lição arendtiana, a faculdade mental do juízo,

entendido como a capacidade de julgar o particular sem dissolvê-lo no geral.

Qual seria então, na linha arendtiana, a razão pela qual alguém se dispõe a

escrever uma biografia, ou seja, para começar etimologicamente, a propor por

escrito uma vida? A ação e o discurso são, de acordo com Hannah Arendt, os

modos pelos quais os seres humanos se revelam uns aos outros na teia das

relações intersubjetivas. Explica ela, no capítulo v de A condição humana, como

as histórias, resultando da ação e do discurso, desvendam um sujeito. Ninguém é

o autor de sua própria vida, mas sim seu sujeito — na dupla acepção da palavra.

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