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apenas “ao atravessá-lo”, apenas se “nos desabituamos do querer”, que podemos
“nos deixar abrir à essência buscada do pensar que não é um querer”. 11
Nós, que queremos homenagear os pensadores, ainda que nossa morada se
encontre no meio do mundo, não podemos sequer nos impedir de achar
chocante, e talvez escandaloso, que tanto Platão como Heidegger, quando se
engajaram nos afazeres humanos, tenham recorrido aos tiranos e ditadores.
Talvez a causa não se encontre apenas a cada vez nas circunstâncias da época, e
menos ainda numa pré-formação do caráter, mas antes no que os franceses
chamam de deformação profissional. Pois a tendência ao tirânico pode se
constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande
exceção). E se essa tendência não é constatável no que fizeram, é apenas porque
muito poucos, mesmo entre eles, estavam dispostos, além “do poder de se
espantar diante do simples”, a “aceitar esse espanto como morada”.
Para esse pequeno número, pouco importa ao final onde podem lançá-los as
tempestades de seu século. Pois a tempestade que o pensamento de Heidegger
levanta — como a que ainda sopra contra nós da obra de Platão, há milênios —
não se origina no século xx. Ela vem do imemorial e o que deixa atrás de si é
uma realização que, como toda realização, retorna ao imemorial.
1 Aus der Erfahrung des Denkens (1947), Pfullingen, 1954.
2 Conferência publicada em L’endurance de la pensée, em homenagem a Jean Beaufret, Paris, Plon,
1968.
3 Gelassenheit, Pfullingen, 1959.
4 Ibid., p. 16.
5 Zur Sache des Denkens, Tübingen, 1969, pp. 61, 30, 78.
6 Alèthéia, in Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, 1954, p. 55.
7 Zur Sache des Denkens, p. 75.
8 Gelassenheit, p. 45.
9 Einführung in die Metaphysik, Tübingen, 1952, p. 10.
10 Essa fuga, que hoje — depois de dissipada a amargura e sobretudo depois que, em certa medida, se
fez justiça a inumeráveis falsas informações — é mais usualmente chamada de “erro”, tem múltiplos
aspectos, entre eles o da época da República de Weimar, que não se mostrava de forma alguma aos que nela
viviam sob essa luz rósea com que se a vê atualmente, por oposição ao aterrorizante pano de fundo do que
se seguiu. O conteúdo do erro se distingue consideravelmente do que então foi a execução de “erros”.
Quem, além de Heidegger, chegou à idéia de ver no nacional-socialismo “o encontro da técnica
planetariamente determinada com o homem dos Tempos Modernos” — a menos que se leiam, em lugar de
Mein Kampf de Hitler, alguns textos dos futuristas italianos onde, aqui e ali, reivindica-se o fascismo ao
invés do nacional-socialismo? Não há dúvida de que esses textos são mais interessantes de ler, mas o que
importa é que Heidegger, como tantos outros intelectuais alemães nazistas e antinazistas de sua geração,
jamais leu Mein Kampf.
Esse erro perde importância quando comparado ao erro muito mais decisivo, que consistiu em se
esquivar à realidade dos porões da Gestapo e dos infernos de torturas dos campos de concentração que
surgiram imediatamente depois do incêndio de Reichstag, refugiando-se em regiões pretensamente mais
significativas. O poeta popular alemão Roben Gilbert exprimiu inesquecivelmente em quatro versos o que
realmente se deu nessa primavera de 1933: