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como capacidade mental, é por nos garantir que o próximo e o distante, como
são dados na sensibilidade, são suscetíveis de uma tal inversão.
Heidegger não se explicou sobre a “morada” que lhe cabia, a morada do
pensar, senão de modo ocasional e alusivo, e no mais das vezes negativamente
— como quando diz que o questionar do pensar “não se sustém na ordem
habitual do cotidiano”, não se encontra “no domínio onde, sob pressão, levam-se
em consideração e se satisfazem as necessidades imperiosas do dia”: 9 “o próprio
questionar está fora da ordem”. Mas essa relação próximo-distante e sua
inversão no pensar atravessam, como um tom fundamental pelo qual tudo se
afina, a obra inteira. Presença e ausência, abrigo e desabrigo, proximidade e
afastamento — seu encadeamento e as relações que reinam entre eles nada têm a
ver, por assim dizer, como lugar comum segundo o qual não poderia haver
presença se não se experimentasse a ausência, proximidade sem afastamento,
desabrigo sem abrigo. Na perspectiva da morada do pensar, o que de fato reina
em torno dela, na “ordem habitual do cotidiano” e dos afazeres humanos, é a
“retirada” ou “o esquecimento” do ser: a retirada daquilo que é o assunto do
pensar, aquilo que, por sua natureza, se sustém no contato com o ausente. A
superação dessa retirada sempre é paga por uma retirada do mundo dos afazeres
humanos, mesmo que o pensar medite justamente esses afazeres em sua calma
retirada. Também Aristóteles, tendo ainda em vista o grande exemplo de Platão,
já aconselhara insistentemente aos filósofos que não quisessem passar por reis
no mundo da política.
“O poder” de “se espantar”, pelo menos ocasionalmente, “diante do simples” é
sem dúvida próprio a todos os homens, e os pensadores do passado e do presente
que nos são familiares podem desde então se distinguir pelo fato de
desenvolverem, a partir desse espanto, o poder de pensar, isto é, o pensar que
lhes é próprio. Já com o poder de aceitar esse espanto como “morada”, as coisas
são diversas. Ele é extraordinariamente raro, e só o encontramos quase
seguramente atestado em Platão, que muitas vezes se pronunciou contra os
perigos dessa morada e, mais radicalmente, no Teeteto (173-6). Aí também
apresenta, e é visivelmente o primeiro a fazê-lo, a história de Tales e da jovem
camponesa trácia que viu como o “sábio”, alçando o olhar para contemplar as
estrelas, caiu dentro do poço e riu do fato de que um homem que queria conhecer
o céu não soubesse mais o que se encontrava aos seus pés. Tales, a crermos em
Aristóteles, ficou tanto mais ofendido porque seus concidadãos tinham o
costume de ridicularizar sua pobreza; e, elaborando uma especulação sobre as
prensas a óleo, quis demonstrar que seria fácil para os “sábios” enriquecerem se