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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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como capacidade mental, é por nos garantir que o próximo e o distante, como

são dados na sensibilidade, são suscetíveis de uma tal inversão.

Heidegger não se explicou sobre a “morada” que lhe cabia, a morada do

pensar, senão de modo ocasional e alusivo, e no mais das vezes negativamente

— como quando diz que o questionar do pensar “não se sustém na ordem

habitual do cotidiano”, não se encontra “no domínio onde, sob pressão, levam-se

em consideração e se satisfazem as necessidades imperiosas do dia”: 9 “o próprio

questionar está fora da ordem”. Mas essa relação próximo-distante e sua

inversão no pensar atravessam, como um tom fundamental pelo qual tudo se

afina, a obra inteira. Presença e ausência, abrigo e desabrigo, proximidade e

afastamento — seu encadeamento e as relações que reinam entre eles nada têm a

ver, por assim dizer, como lugar comum segundo o qual não poderia haver

presença se não se experimentasse a ausência, proximidade sem afastamento,

desabrigo sem abrigo. Na perspectiva da morada do pensar, o que de fato reina

em torno dela, na “ordem habitual do cotidiano” e dos afazeres humanos, é a

“retirada” ou “o esquecimento” do ser: a retirada daquilo que é o assunto do

pensar, aquilo que, por sua natureza, se sustém no contato com o ausente. A

superação dessa retirada sempre é paga por uma retirada do mundo dos afazeres

humanos, mesmo que o pensar medite justamente esses afazeres em sua calma

retirada. Também Aristóteles, tendo ainda em vista o grande exemplo de Platão,

já aconselhara insistentemente aos filósofos que não quisessem passar por reis

no mundo da política.

“O poder” de “se espantar”, pelo menos ocasionalmente, “diante do simples” é

sem dúvida próprio a todos os homens, e os pensadores do passado e do presente

que nos são familiares podem desde então se distinguir pelo fato de

desenvolverem, a partir desse espanto, o poder de pensar, isto é, o pensar que

lhes é próprio. Já com o poder de aceitar esse espanto como “morada”, as coisas

são diversas. Ele é extraordinariamente raro, e só o encontramos quase

seguramente atestado em Platão, que muitas vezes se pronunciou contra os

perigos dessa morada e, mais radicalmente, no Teeteto (173-6). Aí também

apresenta, e é visivelmente o primeiro a fazê-lo, a história de Tales e da jovem

camponesa trácia que viu como o “sábio”, alçando o olhar para contemplar as

estrelas, caiu dentro do poço e riu do fato de que um homem que queria conhecer

o céu não soubesse mais o que se encontrava aos seus pés. Tales, a crermos em

Aristóteles, ficou tanto mais ofendido porque seus concidadãos tinham o

costume de ridicularizar sua pobreza; e, elaborando uma especulação sobre as

prensas a óleo, quis demonstrar que seria fácil para os “sábios” enriquecerem se

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