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ciências — vale para o cotidiano, o evidente, o perfeitamente conhecido e
reconhecido; é também a razão de não ser redutível a nenhum conhecimento.
Heidegger fala uma vez, na total acepção de Platão, do “poder de se espantar
diante do simples”, mas à diferença de Platão acrescenta: “e aceitar esse espanto
como morada”. 6 Esse acréscimo me parece decisivo para uma reflexão sobre
quem é Martin Heidegger. É permitido esperar que muitos homens talvez
conheçam o pensar e a solidão a ele vinculada; mas certamente não têm aí a sua
morada, e se os toma o espanto perante o simples e, cedendo ao espanto,
deixam-se engajar no pensar, sabem que são arrancados à morada que lhes cabe
no continuum dos afazeres e atividades onde se realizam as preocupações
humanas e que a ela retornam após um breve momento. A morada de que fala
Heidegger se encontra então, metaforicamente falando, longe das casas dos
homens; e qualquer tempestade que possa aí irromper sempre será um grau mais
metafórica do que quando falamos de tempestades da época. Comparada aos
outros lugares do mundo, aos lugares dos assuntos humanos, a morada do
pensador é um “lugar de calma”. 7
Originalmente é o próprio espanto que engendra e difunde a calma, e é devido
a essa calma que o abrigo contra todos os ruídos, inclusive o da própria voz, se
torna a condição indispensável para que, a partir do espanto, um pensar possa se
desenvolver. Isso implicitamente significa que tudo que entra no círculo desse
pensar sofre uma transformação. Em sua separação essencial em relação ao
mundo, o pensar sempre se dedica apenas ao ausente, a questões ou coisas
subtraídas à percepção imediata. Se, por exemplo, encontra-se um homem face a
face, ele é percebido de fato em sua corporeidade, mas não se pensa nele. Se se
pensa, já se interpõe um muro entre os que se encontram, secretamente se
distancia o contato imediato. Para se aproximar pelo pensar de uma coisa ou,
antes, de um homem, eles devem se manter distantes da percepção imediata. O
pensar, diz Heidegger, é “a aproximação do distante”. 8
Pode-se facilmente compreendê-lo com o auxílio de uma experiência bastante
conhecida. Partimos de viagem para examinar de perto curiosidades distantes;
muitíssimas vezes é só na lembrança retrospectiva, quando a impressão não mais
nos pressiona, que as coisas que vimos tornam-se totalmente próximas, como se
então revelassem pela primeira vez o seu sentido, pois não estão mais presentes.
Essa inversão das relações e ligações — que o pensar distancie o próximo, isto é,
se retire do próximo, e aproxime o distante — é decisiva para nos esclarecer
sobre a morada do pensar. Se a lembrança que se torna reminiscência no pensar
desempenhou um papel tão importante na história do pensar sobre o pensar,