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experimentava era que o pensar como pura atividade, isto é, algo que não se põe
em movimento nem pela sede de saber, nem pela necessidade de conhecer, pode
se tornar uma paixão que não sufoca as outras capacidades e dons, mas ordenaos
e governa-os. Estamos tão habituados às velhas oposições entre a razão e a
paixão, entre o espírito e a vida, que a idéia de um pensar apaixonado, onde o
Pensar e o Estar-Vivo se tornam um, espanta-nos um pouco. O próprio
Heidegger uma vez exprimiu essa fusão — segundo uma anedota comprovada
— numa fórmula lapidar, quando, no início de um curso sobre Aristóteles, em
lugar da introdução biográfica costumeira, disse: “Aristóteles nasceu, trabalhou e
morreu”. Que exista algo assim é, na verdade, como podemos reconhecer logo a
seguir, a condição de possibilidade da filosofia. Mas é mais que duvidoso que
tivéssemos jamais experimentado tal coisa no século xx sem a existência
pensante de Heidegger. Esse pensar que toma seu desenvolvimento como paixão
a partir do simples fato do ter-nascido-no-mundo, e desde então “pensa sobre o
traço do sentido que reina em tudo o que é”, 3 pode também não ter nenhum
objetivo final — o conhecimento ou o saber — além da própria vida. O fim da
vida é a morte, e no entanto o homem não vive pelo desígnio da morte, mas por
ser um ser vivo; ele não pensa em vista de qualquer resultado que seja, mas por
ser um “ser pensante, isto é, meditativo”. 4
Isso tem por conseqüência o fato de que o pensar se comporta em relação aos
seus próprios resultados de forma destrutiva, isto é, crítica. Os filósofos
certamente têm demonstrado, desde as escolas filosóficas da Antiguidade, uma
tendência fatal à construção de sistemas, e atualmente sentimos muitas vezes
dificuldades em desmontar os edifícios fabricados para descobrir o que foi
propriamente pensado. Entretanto, essa tendência não se origina do pensar, mas
de necessidades totalmente diversas e em si perfeitamente legítimas. Se se quiser
medir o pensar em seu ardor imediato e apaixonado pelos seus resultados,
acontecerá o mesmo que ocorreu com o manto de Penélope — o que se fiou
durante o dia a cada vez é inexoravelmente desfeito à noite, para poder ser
novamente recomeçado no dia seguinte. Cada texto de Heidegger se lê, apesar
das referências ocasionais à obra já publicada, como se recomeçasse tudo e
retomasse apenas a língua já forjada por ele, a sua terminologia; mas aí os
conceitos são apenas “pontos de referência”, graças aos quais se orienta um novo
curso do pensar. Heidegger alude a essa propriedade do pensar quando ressalta
“em que medida a questão crítica: em que consiste a atividade do pensar?
pertence necessária e constantemente ao pensar”; quando fala, a propósito de
Nietzsche, da “ausência de consideração com a qual a cada vez recomeça o