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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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acadêmica porque por aí passava, para eles, a “coisa pensada” ou, como

Heidegger diria hoje, “a coisa do pensar” (Zur Sache des Denkens, 1969). A

novidade que os atraía a Friburgo com o Privatdozent, e um pouco depois em

Marburgo, dizia: há alguém que efetivamente atinge as coisas que Husserl

proclamou; sabe que elas não são um assunto acadêmico, mas a preocupação do

homem pensante e isso, de fato, não só desde ontem ou hoje, mas desde sempre;

e, exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado.

O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se

expunha sua doutrina das idéias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo

durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas

uma problemática altamente contemporânea. Hoje em dia, isso sem dúvida nos

parece totalmente familiar: agora muitos procedem assim; antes de Heidegger,

ninguém o fazia. A novidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser

vivo, ele faz com que falem tesouros culturais do passado considerados mortos e

eis que eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se

julgava. Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.

Assim, o rei secreto no reino do pensar, inteiramente pertencente a esse

mundo, está porém de tal modo nele oculto que não se pode saber com certeza se

existe ou não, mas os habitantes são contudo mais numerosos do que se imagina.

Pois como se poderia explicar de outra forma a influência única, muitas vezes

subterrânea, do pensar e ler pensante heideggerianos, que ultrapassa tão

amplamente o círculo dos alunos e o que geralmente se entende por filosofia?

Pois não foi a filosofia de Heidegger, e pode-se com justiça indagar se ela

existe (como o faz Jean Beaufret), mas sim o pensar de Heidegger que contribuiu

para determinar tão decisivamente a fisionomia espiritual do século xx. Este

pensar tem uma qualidade de abertura que lhe é exclusiva e, para apreendê-la e

indicá-la em palavras, reside no uso transitivo do verbo “pensar”. Heidegger

jamais pensa “sobre” alguma coisa; ele pensa alguma coisa. Nessa atividade

absolutamente não contemplativa, mergulha nas profundezas, mas não se trata,

nessa dimensão — da qual se poderia dizer que antes permanecia, dessa maneira

e com essa precisão, pura e simplesmente não descoberta —, de descobrir ou

revelar um solo último e seguro, mas, mantendo-se nas profundezas, de abrir

caminhos e colocar “pontos de referência” (Wegmarken é o título de uma

coletânea de textos dos anos 1929-1962). Este pensar pode se propor tarefas,

pode se atrelar a “problemas”, e mesmo naturalmente tem sempre algo de

específico com que se ocupa ou, mais precisamente, com que se estimula; mas

não se pode dizer que há um fim. Está permanentemente em atuação, e mesmo a

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