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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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dizia: ‘Já que vocês não me lerão, garanto que não conseguirão’”. Todas essas

queixas eram bastante comuns, de fato tão comuns que, de início, eu não

conseguia entender por que afinal ele se incomodava com elas. Apenas aos

poucos descobri que ele não queria pertencer aos “poucos felizes que, dia a dia,

são cada vez mais poucos e mais infelizes”, pela simples razão de ser um

democrata sincero, com “uma educação científica e uma juventude radical”,

“antiquado o suficiente para acreditar, como Goethe, no Progresso”. E devo

confessar que demorei ainda mais para perceber que sua maravilhosa presença

de espírito, como entendo a precisão de seu riso, não era a simples conseqüência

de sua descrença em qualquer tipo de facilidade e vulgaridade, ou de sua crença

no fato de que qualquer pessoa com quem entrasse em contato tinha o seu

próprio sentimento absoluto (como a absoluta intensidade) pela qualidade, esse

juízo infalível em assuntos artístico, e em todos os assuntos humanos, mas que

existia também, como ele mesmo indicou em “A obscuridade do poeta”, o

irônico e auto-irônico “tom de alguém acostumado à impotência”. Confiei na

própria exuberância de sua cordialidade, julguei ou esperei que seria suficiente

para aparar todos os perigos a que ele estava tão evidentemente exposto, pois eu

achava que seu riso tinha essa exatidão tão perfeita. Como, afinal, alguma das

asneiras eruditas ou sofisticadas sobre a “adaptação” poderia esperar sobreviver

a essa sua única frase (em Pictures from an Institution [Retratos de uma

instituição]): “O presidente Robbins estava tão bem adaptado ao seu ambiente

que às vezes você não conseguiria dizer o que era o ambiente e o que era o

presidente Robbins”? E se você não consegue esquecer a asneira com o riso,

qual o remédio? Refutar ponto a ponto todos os absurdos produzidos pelo século

xx exigiria o prazo de dez vidas, e ao final os refutadores se distinguiram tão

pouco de suas vítimas quanto o presidente da Instituição em relação ao seu

ambiente. Randall, de qualquer forma, nada tinha a protegê-lo contra o mundo

além do seu esplêndido riso, e a imensa coragem nua por trás dele.

Quando o vi pela última vez, não muito antes de sua morte, o riso quase se

fora, e ele estava quase prestes a admitir a derrota. Era a mesma derrota que ele

previra mais de dez anos antes, no poema intitulado “A Conversation with the

Devil” [Uma conversa com o demônio]:

Indulgente, ou cândido, ou incomum leitor

— Tenho alguns: uma esposa, uma freira, um fantasma ou dois —

Se escrevo para alguém, escrevi para você;

Então sussurre, quando eu morrer, Éramos muito poucos;

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