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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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poética podia se tornar irritantemente real quando ele decidia, como muitas

vezes acontecia, me acompanhar até a cozinha para me entreter enquanto eu

preparava nosso jantar. Ou ele podia decidir visitar meu marido e empenhá-lo

em algum longo e ardoroso debate sobre os méritos e categorias de escritores e

poetas, e suas vozes ressoavam fortes quando tentavam se sobrepujar ou um

falar mais alto que o outro — quem sabia melhor apreciar Kim, quem era maior

poeta, Yeats ou Rilke? (Randall, evidentemente, votava por Rilke, e meu marido

por Yeats), e assim por diante, durante horas. Como escreveu Randall, depois de

uma dessas disputas aos gritos, “é sempre espantoso (para um entusiasta) ver

alguém mais entusiástico que você — como o segundo homem mais gordo do

mundo ao encontrar o mais gordo”.

Em seu poema sobre os contos de Grimm, “Os Märchen”, descreveu a terra de

onde viera:

Ouvindo, ouvindo; nunca está quieto.

É a floresta [...]

onde

A luz do sol veio a eles, conforme nosso desejo,

E nós acreditamos, até o anoitecer, naquele desejo;

E nós acreditamos, até o anoitecer, em nossas vidas.

O seu caso não era absolutamente o do homem que foge ao mundo e constrói

um castelo de sonhos; pelo contrário, ele encarava o mundo de frente. E o

mundo, para sua perpétua surpresa, era como era — não povoado de poetas e

leitores de poesia, que para ele pertenciam à mesma raça, mas por

telespectadores e leitores de Seleções do Reader’s Digest, e, pior de tudo, por

essa nova espécie, o “crítico moderno”, que existe não mais “em consideração

das peças e histórias e poemas que critica”, mas em sua própria consideração,

que sabe “como são montados os poemas e os romances”, ao passo que o pobre

escritor “tinha apenas de montá-los. Da mesma forma, se um porco passeasse à

sua frente durante um concurso de toucinhos, você diria impaciente: ‘Sai, porco!

O que você entende de toucinhos?’”. O mundo, em outras palavras, não recebia

bem o poeta, não lhe era grato pelo esplendor que trouxera, parecia dispensar seu

“poder imemorial de converter as coisas desse mundo vistas e sentidas e vivas

em palavras”, e portanto condenava-o à obscuridade, então lamentando que ele

era “obscuro” demais e não podia ser compreendido, até que finalmente “o poeta

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