Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

Eu creio —realmente creio e creio —O país que mais aprecio é o alemão.O “país”, evidentemente, não era a Alemanha, mas o alemão, língua que malconhecia e obstinadamente se recusava a aprender — “Ai, meu alemão não estáum pouco melhor: se traduzo, como posso ter tempo para aprender alemão? Senão traduzo, esqueço o alemão”, foi o que escreveu após minha última tentativanão muito convicta de fazê-lo usar uma gramática e um dicionário.É com Confiança e Amor e lendo Rilke,Sem ein Wörterbuch, que se aprende alemão.Para ele, afinal de contas, isso era bastante verdade, pois lera dessa forma oscontos de Grimm e Des Knaben Wunderhorn, como se estivesse totalmente àvontade na estranha e intensa poesia dos contos e canções populares alemães,que estão num alemão tão intraduzível quanto, digamos, o intraduzível inglês deAlice no País das Maravilhas. De qualquer modo, foi esse elemento popular napoesia alemã que ele amou e reconheceu em Goethe e até em Hölderlin e Rilke.Muitas vezes achei que o país para ele representado pela língua alemã era o lugarde onde realmente proviera, até nos detalhes da aparência física, como umafigura de um país de fadas; era como se tivesse sido trazido por algum ventoencantado até as cidades dos homens, ou surgido das florestas enfeitiçadas ondepassamos nossa infância, trazendo consigo a flauta mágica, e agora não sóquerendo, mas esperando que tudo e todos viessem se unir à dança da meianoite.O que quero dizer é que Randall Jarrell teria sido um poeta mesmo quenunca tivesse escrito um único poema — assim como aquele proverbial Rafael,se nascesse sem mãos, ainda teria sido um grande pintor.Conheci-o melhor durante alguns meses de inverno no início dos anos 1950,quando ficou em Princeton, que lhe parecia “muito mais princetoniano que —que Princeton mesmo”. Ele vinha a Nova York nos finais de semana, deixandoatrás, como dizia, uma casa inteira de pratos e quartos desarrumados e sabe Deusquantos cachorros de rua com quem fizera amizade. No momento em queentrava no apartamento, eu tinha a sensação de que a casa ficava enfeitiçada.Nunca descobri como ele realmente fazia isso, mas não havia um objeto sólido,um utensílio ou uma peça de mobília que não sofresse uma sutil transformação,perdendo nesse processo sua prosaica função cotidiana. Essa transformação

poética podia se tornar irritantemente real quando ele decidia, como muitasvezes acontecia, me acompanhar até a cozinha para me entreter enquanto eupreparava nosso jantar. Ou ele podia decidir visitar meu marido e empenhá-loem algum longo e ardoroso debate sobre os méritos e categorias de escritores epoetas, e suas vozes ressoavam fortes quando tentavam se sobrepujar ou umfalar mais alto que o outro — quem sabia melhor apreciar Kim, quem era maiorpoeta, Yeats ou Rilke? (Randall, evidentemente, votava por Rilke, e meu maridopor Yeats), e assim por diante, durante horas. Como escreveu Randall, depois deuma dessas disputas aos gritos, “é sempre espantoso (para um entusiasta) veralguém mais entusiástico que você — como o segundo homem mais gordo domundo ao encontrar o mais gordo”.Em seu poema sobre os contos de Grimm, “Os Märchen”, descreveu a terra deonde viera:Ouvindo, ouvindo; nunca está quieto.É a floresta [...]ondeA luz do sol veio a eles, conforme nosso desejo,E nós acreditamos, até o anoitecer, naquele desejo;E nós acreditamos, até o anoitecer, em nossas vidas.O seu caso não era absolutamente o do homem que foge ao mundo e constróium castelo de sonhos; pelo contrário, ele encarava o mundo de frente. E omundo, para sua perpétua surpresa, era como era — não povoado de poetas eleitores de poesia, que para ele pertenciam à mesma raça, mas portelespectadores e leitores de Seleções do Reader’s Digest, e, pior de tudo, poressa nova espécie, o “crítico moderno”, que existe não mais “em consideraçãodas peças e histórias e poemas que critica”, mas em sua própria consideração,que sabe “como são montados os poemas e os romances”, ao passo que o pobreescritor “tinha apenas de montá-los. Da mesma forma, se um porco passeasse àsua frente durante um concurso de toucinhos, você diria impaciente: ‘Sai, porco!O que você entende de toucinhos?’”. O mundo, em outras palavras, não recebiabem o poeta, não lhe era grato pelo esplendor que trouxera, parecia dispensar seu“poder imemorial de converter as coisas desse mundo vistas e sentidas e vivasem palavras”, e portanto condenava-o à obscuridade, então lamentando que eleera “obscuro” demais e não podia ser compreendido, até que finalmente “o poeta

Eu creio —

realmente creio e creio —

O país que mais aprecio é o alemão.

O “país”, evidentemente, não era a Alemanha, mas o alemão, língua que mal

conhecia e obstinadamente se recusava a aprender — “Ai, meu alemão não está

um pouco melhor: se traduzo, como posso ter tempo para aprender alemão? Se

não traduzo, esqueço o alemão”, foi o que escreveu após minha última tentativa

não muito convicta de fazê-lo usar uma gramática e um dicionário.

É com Confiança e Amor e lendo Rilke,

Sem ein Wörterbuch, que se aprende alemão.

Para ele, afinal de contas, isso era bastante verdade, pois lera dessa forma os

contos de Grimm e Des Knaben Wunderhorn, como se estivesse totalmente à

vontade na estranha e intensa poesia dos contos e canções populares alemães,

que estão num alemão tão intraduzível quanto, digamos, o intraduzível inglês de

Alice no País das Maravilhas. De qualquer modo, foi esse elemento popular na

poesia alemã que ele amou e reconheceu em Goethe e até em Hölderlin e Rilke.

Muitas vezes achei que o país para ele representado pela língua alemã era o lugar

de onde realmente proviera, até nos detalhes da aparência física, como uma

figura de um país de fadas; era como se tivesse sido trazido por algum vento

encantado até as cidades dos homens, ou surgido das florestas enfeitiçadas onde

passamos nossa infância, trazendo consigo a flauta mágica, e agora não só

querendo, mas esperando que tudo e todos viessem se unir à dança da meianoite.

O que quero dizer é que Randall Jarrell teria sido um poeta mesmo que

nunca tivesse escrito um único poema — assim como aquele proverbial Rafael,

se nascesse sem mãos, ainda teria sido um grande pintor.

Conheci-o melhor durante alguns meses de inverno no início dos anos 1950,

quando ficou em Princeton, que lhe parecia “muito mais princetoniano que —

que Princeton mesmo”. Ele vinha a Nova York nos finais de semana, deixando

atrás, como dizia, uma casa inteira de pratos e quartos desarrumados e sabe Deus

quantos cachorros de rua com quem fizera amizade. No momento em que

entrava no apartamento, eu tinha a sensação de que a casa ficava enfeitiçada.

Nunca descobri como ele realmente fazia isso, mas não havia um objeto sólido,

um utensílio ou uma peça de mobília que não sofresse uma sutil transformação,

perdendo nesse processo sua prosaica função cotidiana. Essa transformação

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