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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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ser, mais do que quer que tenha feito ou executado. Em sua juventude, antes de

adotar a “utilidade” como o padrão último para o julgamento das pessoas, Brecht

sabia disso melhor do que ninguém. Há uma “Balada sobre os segredos de todo e

cada homem”, no Manual de devoção, cuja primeira estrofe, na tradução de

Bentley, diz o seguinte:

Todos sabem o que é um homem. Ele tem um nome.

Ele anda na rua. Ele se senta no bar.

Todos vocês podem ver seu rosto. Todos vocês podem ouvir sua voz

E uma mulher lavou sua camisa e uma mulher penteia seu cabelo.

Mas matem-no! Por que não, se de fato

Ele nunca foi senão

O agente de suas más ações ou

O agente de suas boas ações.

O padrão que rege nesse domínio da desigualdade encontra-se ainda no velho

dito romano Quod licet Iovi non licet bovi, o que é permitido a Júpiter não é

permitido a um boi. Mas, para nosso consolo, essa desigualdade opera nos dois

sentidos. Um dos sinais de que um poeta tem direito a privilégios tais como os

que aqui reivindico para ele é que existem certas coisas que ele não pode fazer e,

ainda assim, continua a ser o que é. A tarefa do poeta é cunhar as palavras pelas

quais vivemos, e certamente ninguém vai viver pelas palavras que Brecht

escreveu em louvor a Stálin. O simples fato de ter sido capaz de escrever versos

tão indizivelmente ruins, muito piores do que faria um versejador de garatujas de

quinta categoria culpado dos mesmos pecados, mostra que quod licet bovi non

licet Iovi, o que é permitido a um boi não é permitido a Júpiter. Pois, possa-se ou

não louvar a tirania com “vozes primorosas”, é certo que os meros intelectuais

ou literatos não são punidos pelos seus pecados com a perda do talento. Nenhum

deus se reclinou sobre seu berço; nenhum deus se vingará. Há muitíssimas coisas

permitidas a um boi e não a Júpiter; isto é, não àqueles que têm algo de Júpiter

— ou melhor, são abençoados por Apolo. Assim o fio do velho dito corta pelos

dois gumes, e o exemplo do “pobre B. B.”, que nunca desperdiçou nenhuma

partícula de piedade consigo mesmo, pode nos ensinar quão difícil é ser poeta no

século xx ou em qualquer outra época.

1 Quase todos os poemas de Brecht existem em várias versões. Citarei, exceto em indicação contrária,

pelas Obras reunidas publicadas a partir do final dos anos 1950 pela Suhrkamp, na Alemanha Ocidental, e

Aufbau-Verlag em Berlim Oriental. As duas primeiras citações estão em “Hollywood” e “Sonett in der

Emigration”, Gedichte 1941-1947, vol. vi. As duas primeiras estrofes do “Sonett in der Emigration” são

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