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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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isto é, por aquela “arte pela arte” que denunciara veementemente durante quase

trinta anos —, sua punição o alcançou. Agora a realidade o esmagava a ponto de

não mais conseguir ser sua voz; conseguiu se manter no centro dela — e provou

que não é um bom lugar para um poeta.

Isso é o que o caso de Bertolt Brecht pode nos ensinar e o que devemos levar

em consideração quando hoje o julgamos, como é preciso, e lhe rendemos nosso

respeito por tudo que devemos a ele. A relação dos poetas com a realidade é de

fato o que Goethe dizia ser: eles não podem arcar com o mesmo peso de

responsabilidade dos mortais comuns; precisam de uma dose de distanciamento

e no entanto não mereceriam o pão que comem se nunca fossem tentados a

trocar esse distanciamento por uma vida como a dos outros. Nessa tentativa

Brecht marcou sua vida e sua arte como poucos poetas jamais fizeram; ela o

levou ao triunfo e à catástrofe.

Desde o início dessas reflexões, afirmei que concedemos uma certa amplitude

aos grandes poetas, que dificilmente nos disporíamos a nos conceder

reciprocamente no curso comum dos acontecimentos. Não nego que isso possa

ofender o senso de justiça de muitos; de fato, se Brecht ainda estivesse entre nós,

certamente seria o primeiro a protestar violentamente contra tal exceção. (Em

Me-ti, livro publicado postumamente, acima mencionado, ele sugere uma

sentença para o “homem bom” que errou. “Ouça”, diz após o término do

interrogatório, “sabemos que você é nosso inimigo. Portanto, agora

encostaremos você à parede. Mas em consideração pelos seus méritos e virtudes,

será uma boa parede, e dispararemos contra você com boas balas de boas armas,

e o enterraremos com boas pás num bom solo.”) Entretanto, a igualdade perante

a lei, que geralmente adotamos como padrão também para nossos juízos morais,

não é absoluta. Todo julgamento está aberto ao perdão, todo ato de julgar pode

se converter num ato de perdão; julgar e perdoar são apenas os dois lados de

uma mesma moeda. Mas os dois lados seguem regras diversas. A majestade das

leis exige que sejamos iguais — que apenas contem nossos atos, e não a pessoa

que os cometeu. O ato de perdoar, pelo contrário, leva a pessoa em consideração;

nenhum perdão perdoa o assassinato ou o roubo, mas somente o assassino ou o

ladrão. Sempre perdoamos alguém, nunca algo, e é por isso que as pessoas

acham que só o amor pode perdoar. Mas, com ou sem amor, perdoamos em favor

da pessoa e, enquanto a justiça exige que todos sejam iguais, a clemência insiste

na desigualdade — uma desigualdade que implica que cada homem é, ou deveria

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