Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
como é que gostariam de se refugiar na invisibilidade. E na invisibilidade, nessaobscuridade onde um homem que aí se escondeu não precisa mais ver o mundovisível, somente a cordialidade e a fraternidade de seres humanos estreitamentecomprimidos podem compensar a estranha irrealidade que assumem as relaçõeshumanas, onde quer que se desenvolvam em ausência absoluta de mundanidade,desligadas de um mundo comum a todas as pessoas. Em tal estado de ausênciade mundanidade e realidade, é fácil concluir que o elemento comum a todos oshomens não é o mundo, mas a “natureza humana” de tal e tal tipo. O que seja otipo depende do intérprete; pouco importa que se ressalte a razão comopropriedade de todos os homens ou um sentimento comum a todos, como acapacidade de compaixão. O racionalismo e o sentimentalismo do século xviiisão apenas dois aspectos da mesma coisa; ambos podiam igualmente conduziràquele excesso entusiástico em que os indivíduos sentem laços de fraternidadecom todos os homens. Em qualquer caso, essa racionalidade e essasentimentalidade eram apenas substitutos psicológicos, situados no âmbito dainvisibilidade, para a perda do mundo visível e comum.Ora, essa “natureza humana” e os sentimentos de fraternidade que aacompanham manifestam-se apenas na obscuridade, e portanto não podem seridentificados no mundo. E mais, em condições de visibilidade, dissolvem-se nonada como fantasmas. A humanidade dos insultados e injuriados nuncasobreviveu ainda sequer um minuto à hora da libertação. Isso não quer dizer queela seja insignificante, pois na verdade torna suportáveis o insulto e a injúria;mas sim que em termos políticos é absolutamente irrelevante.
iiiÉ evidente que essas e outras questões semelhantes acerca da atitudeapropriada em “tempos sombrios” são especialmente familiares à geração e aogrupo a que pertenço. Se a concordância com o mundo, parte e parcela dorecebimento de homenagens, nunca foi fácil em nossos tempos e nascircunstâncias do nosso mundo, é-o ainda menos para nós. Certamente ashomenagens não estavam incluídas em nosso direito de nascimento, e não seriasurpreendente que não fôssemos mais capazes da abertura e da confiançanecessárias simplesmente para se aceitar com gratidão o que o mundo oferece deboa fé. Mesmo aqueles entre nós que se aventuraram, pela palavra escrita oufalada, na vida pública, não o fizeram por nenhum prazer original pela cenapública, e dificilmente esperaram ou aspiraram a receber o selo da aprovaçãopública. Mesmo em público, tendiam a se dirigir apenas a seus amigos ou a falaràqueles leitores e ouvintes dispersos e desconhecidos a quem todos os que falame escrevem não podem absolutamente deixar de se sentir unidos por uma certafraternidade um tanto obscura. Temo que, em seu empenho, sentissempouquíssima responsabilidade para com o mundo; esse empenho era antesguiado pela sua esperança de preservar um mínimo de humanidade num mundoque se tornara inumano, resistindo o máximo possível, simultaneamente, àestranha irrealidade dessa ausência de mundanidade — cada um à sua maneira, euns poucos, dentro de sua capacidade, tentando entender até mesmo ainumanidade e as monstruosidades intelectuais e políticas de uma épocadesarticulada.Ressalto tão explicitamente meu pertencimento ao grupo de judeus expulsosda Alemanha, numa época relativamente inicial, pois pretendo evitar alguns malentendidosque podem surgir com excessiva facilidade quando se fala dehumanidade. A esse respeito, não posso atenuar o fato de que, por muitos anos,considerei que a única resposta adequada à pergunta “quem é você?” era: “umjudeu”. A única resposta que levava em conta a realidade da perseguição. Quantoà afirmação com que Nathan, o Sábio (de fato, embora não na frase efetiva) secontrapõe à ordem: “Aproxime-se, judeu” — a afirmação: “Sou um homem” —,eu a teria considerado como nada além de uma evasão grotesca e perigosa darealidade.Quero também esclarecer rapidamente um outro mal-entendido semelhante.Quando emprego a palavra “judeu”, não pretendo sugerir nenhum tipo especialde ser humano, como se o destino judaico fosse representativo ou exemplar para
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como é que gostariam de se refugiar na invisibilidade. E na invisibilidade, nessa
obscuridade onde um homem que aí se escondeu não precisa mais ver o mundo
visível, somente a cordialidade e a fraternidade de seres humanos estreitamente
comprimidos podem compensar a estranha irrealidade que assumem as relações
humanas, onde quer que se desenvolvam em ausência absoluta de mundanidade,
desligadas de um mundo comum a todas as pessoas. Em tal estado de ausência
de mundanidade e realidade, é fácil concluir que o elemento comum a todos os
homens não é o mundo, mas a “natureza humana” de tal e tal tipo. O que seja o
tipo depende do intérprete; pouco importa que se ressalte a razão como
propriedade de todos os homens ou um sentimento comum a todos, como a
capacidade de compaixão. O racionalismo e o sentimentalismo do século xviii
são apenas dois aspectos da mesma coisa; ambos podiam igualmente conduzir
àquele excesso entusiástico em que os indivíduos sentem laços de fraternidade
com todos os homens. Em qualquer caso, essa racionalidade e essa
sentimentalidade eram apenas substitutos psicológicos, situados no âmbito da
invisibilidade, para a perda do mundo visível e comum.
Ora, essa “natureza humana” e os sentimentos de fraternidade que a
acompanham manifestam-se apenas na obscuridade, e portanto não podem ser
identificados no mundo. E mais, em condições de visibilidade, dissolvem-se no
nada como fantasmas. A humanidade dos insultados e injuriados nunca
sobreviveu ainda sequer um minuto à hora da libertação. Isso não quer dizer que
ela seja insignificante, pois na verdade torna suportáveis o insulto e a injúria;
mas sim que em termos políticos é absolutamente irrelevante.