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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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quando Brecht as escreveu. Sem dúvida, essa fama tardia é um tributo aos

méritos próprios de Brecht, e não só aos méritos do poeta e dramaturgo, mas

também aos do diretor teatral extraordinariamente dotado, que tinha à sua

disposição uma das maiores atrizes alemãs, Helene Weigel, sua esposa. Mas isso

não altera o fato de que tudo o que encenou em Berlim Oriental foi escrito fora

da Alemanha. Uma vez de volta, sua faculdade poética exauriu-se da noite para

o dia. Deve ter finalmente compreendido que estava frente a circunstâncias que

nenhuma citação dos “clássicos” poderia explicar ou justificar. Esbarrara numa

situação em que seu próprio silêncio — para não falar de seu elogio ocasional

aos carniceiros — constituía um crime.

Os problemas de Brecht começaram quando se tornou engagé (como diríamos

hoje, pois na época esse conceito não existia), quando tentou ser mais que uma

voz, como fora de início. Uma voz de quê? Não de si mesmo, certamente, mas

do mundo e de tudo o que era real. Mas isso não bastava. Ser uma voz daquilo

que julgava ser a realidade afastou-o do real; não estava em vias de se tornar o

que menos desejava, mais um grande poeta solitário na tradição alemã, ao invés

do que mais queria ser, um bardo do povo? E no entanto, quando se pôs no

centro das coisas, o que trouxe a contragosto para a realidade recém-descoberta

foi o seu distanciamento como poeta, não obstante sua aguda e complexa

inteligência. Não foi tanto falta de coragem, e sim esse distanciamento em

relação ao real que o fez não romper com um partido que matava seus amigos e

se aliava ao seu pior inimigo, e recusar-se a ver, por amor aos “clássicos”, o que

realmente ocorria em sua terra natal — algo que, em seus momentos mais

prosaicos, entendia muito bem. Nas notas finais de A resistível ascensão do

homem Arturo Ui — uma sátira à “irresistível” ascensão de Hitler ao poder, e

não uma grande peça —, ele observou: “Os grandes criminosos políticos devem

ser expostos por todos os meios, especialmente pelo ridículo. Pois são sobretudo

não grandes criminosos políticos, mas os perpetradores de grandes crimes

políticos, o que não é de modo algum a mesma coisa. [...] O fracasso dos

empreendimentos de Hitler não significa que este fosse um idiota, e a amplitude

de seus empreendimentos não significa que fosse um grande homem”. 61 Era bem

mais do que a maioria dos intelectuais entendeu em 1941, e é precisamente essa

inteligência extraordinária, irrompendo como um raio entre os ribombos das

banalidades marxistas, que dificultou tanto que os homens bons lhe perdoassem

os pecados, ou se reconciliassem com o fato de que ele podia pecar e escrever

boa poesia. Mas, finalmente, quando retornou à Alemanha Oriental,

essencialmente por razões artísticas, pois o governo lhe ofereceria um teatro —

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