Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

vPara a minha finalidade, que é apresentar minha tese de que os pecados reaisde um poeta são vingados pelos deuses da poesia, Medida adotada é uma peçaimportante. Pois, de um ponto de vista artístico, não é de modo algum uma peçaruim. Tem letras excelentes, entre as quais a “Canção do arroz”, de justa fama,cujas rimas concisas e insistentes soam bastante bem, mesmo atualmente:Weiss ich, was ein Reis ist?Weiss ich, wer das weiss!Ich weiss nicht, was ein Reis istIch kenne nur seinen Preis.Weiss ich, was ein Mensch ist?Weiss ich, wer das weiss!Ich weiss nicht, was ein Mensch istIch kenne nur seinen Preis. 56Não há dúvida de que a peça defende com toda seriedade — não só pordiversão ou com uma seriedade sarcástica swiftiana — coisas que são, mais quemoralmente erradas, indizivelmente medonhas. E no entanto a sorte poética deBrecht não o abandonou naquele momento, pois ainda falava a verdade — umaverdade medonha, com que erradamente tentou entrar em acordo.Os pecados de Brecht se revelaram pela primeira vez depois que os nazistastomaram o poder e ele teve de enfrentar de fora as realidades do Terceiro Reich.Seguiu para o exílio em 28 de fevereiro de 1933, no dia seguinte ao incêndio doReichstag. Os “clássicos” com que obstinadamente tentava determinar suasposições não lhe permitiram reconhecer o que Hitler efetivamente fazia. Elecomeçou a mentir e escreveu o inexpressivo diálogo em prosa de Terror emiséria do Terceiro Reich, que antecipa pseudopoemas posteriores, que nãopassam de jornalismo distribuído em versos. Em 1935 ou 1936, Hitler acabaracom a fome e o desemprego; assim, para Brecht, escolado nos “clássicos”, nãohavia mais nenhum pretexto para não louvar Hitler. Ao buscar um, simplesmentese recusou a reconhecer o que estava patente para todos — que os realmenteperseguidos não eram trabalhadores e sim judeus, que o que importava era araça, e não a classe. Não havia nenhuma linha em Marx, Engels ou Lênin quetratasse da questão, e os comunistas a negavam — não era senão uma simulação

das classes dominantes, diziam eles — e Brecht, impassivelmente recusando-se a“olhar por si mesmo”, aderiu. Escreveu alguns poemas sobre as condições naAlemanha nazista, todos eles absolutamente ruins, e um exemplo ilustrativodesses poemas é o que se chamava “Enterro do agitador no caixão de zinco”. 57Trata do hábito nazista de devolver às suas casas, em caixões lacrados, os restosde pessoas espancadas até a morte nos campos de concentração. O agitador deBrecht sofrera tal destino por ter reivindicado “comer à vontade, um teto para seabrigar, alimentar os filhos”; em suma, era um louco, pois ninguém na Alemanhapassava fome na época, e o lema nazista da Volksgemeinschaft (comunidadepopular) não era de forma alguma simples propaganda. Quem se incomodariaem eliminá-lo? O horror real, o único ponto a se ressaltar, era o modo comomorrera e tivera de ser escondido no caixão de zinco. O caixão de zinco erarealmente importante, mas Brecht não seguiu a indicação do título; em suaversão, o destino do agitador não era propriamente nada pior que o destino queprovavelmente sofreria um opositor de qualquer espécie de governo capitalista.E isso era uma mentira. O que Brecht queria dizer era que havia apenas umadiferença de grau entre os países de regime capitalista. E essa era uma duplamentira, pois nos países capitalistas os opositores não eram espancados até amorte e enviados às casas em caixões lacrados, e a Alemanha não era mais umpaís capitalista, como aprenderiam, para seu desgosto, os srs. Schacht e Thyssen.E Brecht? Fugira de um país onde todos podiam comer à vontade, ter um tetopara se abrigar e alimentar seus filhos. Eis como era, e isso ele não ousouencarar. Mesmo os poemas contra a guerra daqueles anos eram medíocres. 58Contudo, por ruim que fosse a obra de todo esse período, não era o fim. Osanos de exílio, à medida que se passavam e o levavam cada vez mais longe doturbilhão em que consistia a Alemanha do pós-guerra, tiveram um efeito muitosalutar sobre sua produção. O que seria mais pacífico nos anos 1930 do que ospaíses escandinavos? E o que quer que ele possa ter dito, com ou sem razão,contra Los Angeles, não era um lugar famoso por trabalhadores desempregadose crianças famintas. Embora o negasse até seu último dia, a evidência poética é ade que lentamente principiava a esquecer os “clássicos” e sua mente começava ase voltar para temas que nada tinham a ver com o capitalismo ou a luta declasses. De Svendborg saíram poemas como a “Lenda sobre a origem do livroTao-Te-Ching durante a viagem de Lao-Tsé para o exílio”, o qual, com suaforma narrativa e nenhuma tentativa experimental em relação à linguagem ou aopensamento, encontra-se entre os poemas mais serenos e — estranho dizer —confortantes escritos no século xx. 59 Como tantos poemas de Brecht, ele quer

das classes dominantes, diziam eles — e Brecht, impassivelmente recusando-se a

“olhar por si mesmo”, aderiu. Escreveu alguns poemas sobre as condições na

Alemanha nazista, todos eles absolutamente ruins, e um exemplo ilustrativo

desses poemas é o que se chamava “Enterro do agitador no caixão de zinco”. 57

Trata do hábito nazista de devolver às suas casas, em caixões lacrados, os restos

de pessoas espancadas até a morte nos campos de concentração. O agitador de

Brecht sofrera tal destino por ter reivindicado “comer à vontade, um teto para se

abrigar, alimentar os filhos”; em suma, era um louco, pois ninguém na Alemanha

passava fome na época, e o lema nazista da Volksgemeinschaft (comunidade

popular) não era de forma alguma simples propaganda. Quem se incomodaria

em eliminá-lo? O horror real, o único ponto a se ressaltar, era o modo como

morrera e tivera de ser escondido no caixão de zinco. O caixão de zinco era

realmente importante, mas Brecht não seguiu a indicação do título; em sua

versão, o destino do agitador não era propriamente nada pior que o destino que

provavelmente sofreria um opositor de qualquer espécie de governo capitalista.

E isso era uma mentira. O que Brecht queria dizer era que havia apenas uma

diferença de grau entre os países de regime capitalista. E essa era uma dupla

mentira, pois nos países capitalistas os opositores não eram espancados até a

morte e enviados às casas em caixões lacrados, e a Alemanha não era mais um

país capitalista, como aprenderiam, para seu desgosto, os srs. Schacht e Thyssen.

E Brecht? Fugira de um país onde todos podiam comer à vontade, ter um teto

para se abrigar e alimentar seus filhos. Eis como era, e isso ele não ousou

encarar. Mesmo os poemas contra a guerra daqueles anos eram medíocres. 58

Contudo, por ruim que fosse a obra de todo esse período, não era o fim. Os

anos de exílio, à medida que se passavam e o levavam cada vez mais longe do

turbilhão em que consistia a Alemanha do pós-guerra, tiveram um efeito muito

salutar sobre sua produção. O que seria mais pacífico nos anos 1930 do que os

países escandinavos? E o que quer que ele possa ter dito, com ou sem razão,

contra Los Angeles, não era um lugar famoso por trabalhadores desempregados

e crianças famintas. Embora o negasse até seu último dia, a evidência poética é a

de que lentamente principiava a esquecer os “clássicos” e sua mente começava a

se voltar para temas que nada tinham a ver com o capitalismo ou a luta de

classes. De Svendborg saíram poemas como a “Lenda sobre a origem do livro

Tao-Te-Ching durante a viagem de Lao-Tsé para o exílio”, o qual, com sua

forma narrativa e nenhuma tentativa experimental em relação à linguagem ou ao

pensamento, encontra-se entre os poemas mais serenos e — estranho dizer —

confortantes escritos no século xx. 59 Como tantos poemas de Brecht, ele quer

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