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não serem bons”, e partilha com Maquiavel da atitude sofisticada e
aparentemente ambígua em relação à bondade, que deu origem a tantos malentendidos
simplistas ou eruditos — tanto em seu caso como no de seu
predecessor.
“Como não ser bom” é o tema de Santa Joana dos matadouros, a maravilhosa
peça de juventude sobre a moça do Exército de Salvação de Chicago que
aprenderia que, no dia em que teremos de deixar o mundo, será mais importante
ter deixado atrás de nós um mundo melhor do que termos sido bons. A pureza, o
arrojo e a inocência de Joana encontram um paralelo nas peças de Brecht em
Simone, em As visões de Simone Machard, a menina que sonha com Joana
D’Arc sob a ocupação alemã, e na garota Grusche em O círculo de giz
caucasiano, onde pelo menos uma vez se expressa todo o problema da bondade:
“Terrível é a tentação de ser bom” (“Schrecklich ist die Verführung zur Güte”) —
se irresistível nessa sua atração, perigosa e suspeita em suas conseqüências
(Quem sabe a cadeia de acontecimentos resultante do que se fez
impulsivamente? O gesto simples não o distrairá de tarefas mais importantes?),
mas também irrevogavelmente terrível para quem, ocupado demais com sua
própria sobrevivência ou com a salvação do mundo, resiste à tentação: “Ela que
não ouve o grito por socorro, mas passa com ouvidos desatentos: nunca mais
ouvirá o chamado suave do amado ou do melro na aurora, ou o suspiro feliz do
vindimador fatigado ao repicarem os sinos do Angelus”. 49 Render-se ou não à
tentação, resolver os conflitos a que a bondade inevitavelmente conduz são os
temas sempre recorrentes das peças de Brecht. Em O círculo de giz caucasiano,
a garota Grusche cede à tentação e tudo termina bem. Em A boa mulher de Se-
Tsuan, o problema se resolve com a criação de um duplo papel: a mulher, que é
pobre demais para ser boa, e literalmente não se pode dar ao luxo da piedade,
converte-se num intrépido homem de negócios durante o dia, faz fortuna
enganando e explorando as pessoas, e à noite distribui os ganhos do dia entre as
mesmas pessoas. Era uma solução prática, e Brecht era um homem muito
prático. O tema também está presente em Mãe Coragem (não obstante a
interpretação pessoal de Brecht) e mesmo em Galileu. E quaisquer dúvidas
restantes sobre a autenticidade dessa compaixão apaixonada se dispersam ao
lermos a última estrofe da canção final da versão filmada de A ópera dos três
vinténs:
Denn die einen sind im Dunkeln
Und die andern sind im Licht.