Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
ivO que trouxe Brecht de volta à realidade, e quase matou sua poesia, foi acompaixão. Quando imperava a fome, ele se rebelou junto com os famintos:“Disseram-me: você come e bebe — feliz é você! Mas como posso comer ebeber quando roubo meu alimento do homem que tem fome, e quando meu copode água é necessário para alguém que morre de sede?”. 45 A compaixão foi semdúvida a paixão mais ardente e fundamental de Brecht, e daí o fato de ser a queele mais tentava ocultar e menos conseguia esconder; ela transparece em quasetodas as peças que escreveu. Mesmo na alegria cínica de A ópera dos três vinténssoam os versos poderosos e acusadores:Erst muss es möglich sein auch armen LeutenVom grossen Brotlaib sich ihr Teil zu schneiden. 46E o que aí se cantava zombeteiramente mantinha-se como seu leitmotiv até ofinal:Ein guter Mensch sein! Ja, wer wär’s nicht gern?Sein Gut den Armen geben, warum nicht?Wenn alle gut sind, ist Sein Reich nicht fernWer sässe nicht sehr gern in Seinem Licht? 47O leitmotiv era a tentação impetuosa de ser bom num mundo e emcircunstâncias que tornam a bondade impossível e autodestrutiva. O conflitodramático nas peças de Brecht é quase sempre o mesmo: os que, movidos pelacompaixão, decidem mudar o mundo não se podem dar ao luxo de serem bons.Brecht descobriu instintivamente o que os historiadores da revolução nuncaconseguiam ver: a saber, que os revolucionários modernos, de Robespierre aLênin, eram movidos pela paixão da compaixão — le zèle compatissant deRobespierre, ainda inocente o suficiente para admitir abertamente essa poderosaatração por “les hommes faibles” e “les malhereux”. “Os clássicos”, Marx,Engels e Lênin, na linguagem cifrada de Brecht, “foram os mais compassivosentre todos os homens”, e o que os distinguia dos “ignorantes” era saberem“transformar” a emoção compassiva na emoção da “cólera”. Eles entenderamque “a piedade é aquilo que não se nega àqueles a quem se recusa auxílio”. 48Assim Brecht se convenceu, provavelmente sem se dar conta, da sabedoria dopreceito de Maquiavel para os príncipes e estadistas, que devem aprender “como
não serem bons”, e partilha com Maquiavel da atitude sofisticada eaparentemente ambígua em relação à bondade, que deu origem a tantos malentendidossimplistas ou eruditos — tanto em seu caso como no de seupredecessor.“Como não ser bom” é o tema de Santa Joana dos matadouros, a maravilhosapeça de juventude sobre a moça do Exército de Salvação de Chicago queaprenderia que, no dia em que teremos de deixar o mundo, será mais importanteter deixado atrás de nós um mundo melhor do que termos sido bons. A pureza, oarrojo e a inocência de Joana encontram um paralelo nas peças de Brecht emSimone, em As visões de Simone Machard, a menina que sonha com JoanaD’Arc sob a ocupação alemã, e na garota Grusche em O círculo de gizcaucasiano, onde pelo menos uma vez se expressa todo o problema da bondade:“Terrível é a tentação de ser bom” (“Schrecklich ist die Verführung zur Güte”) —se irresistível nessa sua atração, perigosa e suspeita em suas conseqüências(Quem sabe a cadeia de acontecimentos resultante do que se fezimpulsivamente? O gesto simples não o distrairá de tarefas mais importantes?),mas também irrevogavelmente terrível para quem, ocupado demais com suaprópria sobrevivência ou com a salvação do mundo, resiste à tentação: “Ela quenão ouve o grito por socorro, mas passa com ouvidos desatentos: nunca maisouvirá o chamado suave do amado ou do melro na aurora, ou o suspiro feliz dovindimador fatigado ao repicarem os sinos do Angelus”. 49 Render-se ou não àtentação, resolver os conflitos a que a bondade inevitavelmente conduz são ostemas sempre recorrentes das peças de Brecht. Em O círculo de giz caucasiano,a garota Grusche cede à tentação e tudo termina bem. Em A boa mulher de Se-Tsuan, o problema se resolve com a criação de um duplo papel: a mulher, que épobre demais para ser boa, e literalmente não se pode dar ao luxo da piedade,converte-se num intrépido homem de negócios durante o dia, faz fortunaenganando e explorando as pessoas, e à noite distribui os ganhos do dia entre asmesmas pessoas. Era uma solução prática, e Brecht era um homem muitoprático. O tema também está presente em Mãe Coragem (não obstante ainterpretação pessoal de Brecht) e mesmo em Galileu. E quaisquer dúvidasrestantes sobre a autenticidade dessa compaixão apaixonada se dispersam aolermos a última estrofe da canção final da versão filmada de A ópera dos trêsvinténs:Denn die einen sind im DunkelnUnd die andern sind im Licht.
- Page 159 and 160: escolhido expressar essa ambição
- Page 161 and 162: Além disso, em sua atitude diante
- Page 163 and 164: sua base material de modo tão cata
- Page 165 and 166: batizar”. Mas mesmo que desse cer
- Page 167 and 168: 1922): para Kafka, era “incompree
- Page 169 and 170: no sentido dessa rebelião dupla co
- Page 171 and 172: inclinado a supor que nosso planeta
- Page 173 and 174: substituem a coerência interna da
- Page 175 and 176: inesperadamente uma pesada garra”
- Page 177 and 178: como se poderia supor à primeira v
- Page 179 and 180: da ruptura da tradição — assim
- Page 181 and 182: invocações rituais, e os espírit
- Page 183 and 184: pensamento”, como algo “rico e
- Page 185 and 186: BERTOLT BRECHT: 1898-1956Você espe
- Page 187 and 188: No entanto, a biografia política d
- Page 189 and 190: esclarecer o que queria dizer, ele
- Page 191 and 192: Sieben Rosen hat der StrauchSechs g
- Page 193 and 194: viver num lugar onde ocorrem coisas
- Page 195 and 196: iiPara começar, devo citar umas po
- Page 197 and 198: homens, dos pescadores, subindo e m
- Page 199 and 200: especiais, mas ser como todo mundo.
- Page 201 and 202: classe operária”, a quem amou e
- Page 203 and 204: iiiEste, então, era o homem: dotad
- Page 205 and 206: homem viajou com as coisas que eram
- Page 207 and 208: menos às preocupações mais eleva
- Page 209: nada mais a fazer?”. 44O tédio,
- Page 213 and 214: em algumas das mais belas canções
- Page 215 and 216: nenhuma mesquinharia, nenhuma trai
- Page 217 and 218: das classes dominantes, diziam eles
- Page 219 and 220: quando Brecht as escreveu. Sem dúv
- Page 221 and 222: ser, mais do que quer que tenha fei
- Page 223 and 224: 16 Ver a monografia de Marianne Kes
- Page 225 and 226: RANDALL JARRELL: 1914-1965Encontrei
- Page 227 and 228: poética podia se tornar irritantem
- Page 229 and 230: Escreva sobre mim (se puder; eu mal
- Page 231 and 232: nada houve de esotérico.Quem entã
- Page 233 and 234: formação dos caminhos serve antes
- Page 235 and 236: pensar”; quando diz que o pensar
- Page 237 and 238: como capacidade mental, é por nos
- Page 239 and 240: apenas “ao atravessá-lo”, apen
- Page 241 and 242: PosfácioHANNAH ARENDT: VIDA E OBRA
- Page 243 and 244: iiHannah Arendt gostava de contar h
- Page 245 and 246: também a sua vida acima da trivial
- Page 247 and 248: Em 1969, ao celebrar os oitenta ano
- Page 249 and 250: que esclarecem elementos-chave de f
- Page 251 and 252: de um texto de 1942, intitulado “
- Page 253 and 254: vHannah Arendt, como ela mesma diss
- Page 255 and 256: inclusive um judiciário independen
- Page 257 and 258: na verdade, um Lênin manqué, até
- Page 259 and 260: sociais aos quais a igualdade é de
iv
O que trouxe Brecht de volta à realidade, e quase matou sua poesia, foi a
compaixão. Quando imperava a fome, ele se rebelou junto com os famintos:
“Disseram-me: você come e bebe — feliz é você! Mas como posso comer e
beber quando roubo meu alimento do homem que tem fome, e quando meu copo
de água é necessário para alguém que morre de sede?”. 45 A compaixão foi sem
dúvida a paixão mais ardente e fundamental de Brecht, e daí o fato de ser a que
ele mais tentava ocultar e menos conseguia esconder; ela transparece em quase
todas as peças que escreveu. Mesmo na alegria cínica de A ópera dos três vinténs
soam os versos poderosos e acusadores:
Erst muss es möglich sein auch armen Leuten
Vom grossen Brotlaib sich ihr Teil zu schneiden. 46
E o que aí se cantava zombeteiramente mantinha-se como seu leitmotiv até o
final:
Ein guter Mensch sein! Ja, wer wär’s nicht gern?
Sein Gut den Armen geben, warum nicht?
Wenn alle gut sind, ist Sein Reich nicht fern
Wer sässe nicht sehr gern in Seinem Licht? 47
O leitmotiv era a tentação impetuosa de ser bom num mundo e em
circunstâncias que tornam a bondade impossível e autodestrutiva. O conflito
dramático nas peças de Brecht é quase sempre o mesmo: os que, movidos pela
compaixão, decidem mudar o mundo não se podem dar ao luxo de serem bons.
Brecht descobriu instintivamente o que os historiadores da revolução nunca
conseguiam ver: a saber, que os revolucionários modernos, de Robespierre a
Lênin, eram movidos pela paixão da compaixão — le zèle compatissant de
Robespierre, ainda inocente o suficiente para admitir abertamente essa poderosa
atração por “les hommes faibles” e “les malhereux”. “Os clássicos”, Marx,
Engels e Lênin, na linguagem cifrada de Brecht, “foram os mais compassivos
entre todos os homens”, e o que os distinguia dos “ignorantes” era saberem
“transformar” a emoção compassiva na emoção da “cólera”. Eles entenderam
que “a piedade é aquilo que não se nega àqueles a quem se recusa auxílio”. 48
Assim Brecht se convenceu, provavelmente sem se dar conta, da sabedoria do
preceito de Maquiavel para os príncipes e estadistas, que devem aprender “como