23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O que possam ser os deuses,

Que nenhuma vida dura sempre;

Que os mortos nunca se levantam;

Que mesmo o rio mais exausto

Serpenteia seguro até o mar.

Mas em Dostoiévski esse pensamento é uma inspiração do Demônio, e em

Swinburne do cansaço, uma rejeição da vida como algo que nenhum ser humano

desejaria viver duas vezes. Em Brecht, o pensamento de nenhum-Deus e

nenhum-além não exprime ansiedade mas libertação do medo. E Brecht deve ter

captado esse aspecto da questão com tanta presteza por ter sido criado em

ambiente católico; obviamente julgava que qualquer coisa seria preferível a se

sentar na terra esperando o Paraíso e temendo o Inferno. O que nele se rebelou

contra a religião não foi a dúvida nem o desejo; foi o orgulho. Em sua recusa

entusiástica da religião e em seu louvor a Baal, o deus da terra, há uma gratidão

quase que explosiva. Nada, diz ele, é maior que a vida, e nada mais nos foi dado

— e tal gratidão dificilmente se encontrará na tradicional corrente do niilismo ou

na reação a ela.

Mas há elementos niilistas na poesia inicial de Brecht, e provavelmente

ninguém teve maior consciência deles do que o próprio Brecht. Entre os poemas

póstumos, existem uns poucos versos chamados “Der Nachgeborene”, ou “Os

retardatários”, que resumem o niilismo melhor do que poderiam fazê-lo volumes

inteiros de argumentos: “Admito que não tenho esperança. Os cegos falam de

uma saída. Eu vejo. Quando se consumirem todos os erros, ficaremos com uma

última companhia à mesa — o nada”. 43 A ascensão e queda da cidade de

Mahagonny, que é a única peça estritamente niilista de Brecht, trata do último

erro, o seu próprio, o erro de que o que a vida tem a dar — os grandes prazeres

do comer, beber, fornicar e brigar — seria suficiente. A cidade é uma espécie de

devoradora de ouro, construída com o único propósito de proporcionar

divertimento, de fornecer felicidade aos homens. Seu lema é “Vor allem aber

achtet scharf/ Dass man hier alles dürfen darf” (“Primeiro de tudo, entendam

que aqui tudo é permitido”). Há duas razões para a queda da cidade, sendo a

mais óbvia que, mesmo na cidade onde tudo é permitido, não é permitido não ter

dinheiro para pagar as dívidas; sob essa trivialidade, encontra-se a segunda razão

— a percepção de que a cidade do prazer terminaria por criar o maior tédio

mortal imaginável, pois seria o lugar onde “nunca acontece nada” e onde um

homem poderia cantar: “Por que eu não deveria comer meu chapéu se não há

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!