Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
garças cruzando o céu, ao lado da nuvem, garça e nuvem partilhando o belo céupor poucos momentos de vôo. 39 Certamente neste mundo não existe o amoreterno, nem mesmo uma fidelidade comum. Não há nada além da intensidade domomento; isto é, a paixão, que é até um pouco mais perecível que o própriohomem.Baal possivelmente não poderia ser a divindade de nenhuma ordem social, e oreino por ele governado é povoado pelos marginais da sociedade — os páriasque, por viverem fora da civilização, mantêm uma relação mais intensa, eportanto mais autêntica, com o sol, que se levanta e se põe com uma indiferençamajestosa e brilha sobre todas as criaturas vivas. Há, por exemplo, a “Balada dospiratas”, com seu navio carregado de homens rudes, bêbados, pecadores,blasfemos, resolutos na destruição. 40 Lá estão eles no navio condenado,enlouquecidos pela bebida, pela escuridão, com chuvas inauditas, adoentadospelo sol e pelo frio, à mercê de todos os elementos, caminhando celerementepara a sua ruína. E então vem o refrão: “Ó Céu, radiante e límpido azul!Formidável vento em nossas velas! Voem o céu e o vento, desde que o mar fiqueem torno do [navio] Santa Maria”.Von Branntwein toll und Finsternissen!Von unerhörten Güssen nass!Vom Frost eisweisser Nacht zerrissen!Im Mastkorb, von Gesichten blass!Von Sonne nackt gebrannt und krank!(Die hatten sie im Winter lieb)Aus Hunger, Fieber und GestankSang alles, was noch übrig blieb:Himmel, strahlender Azur!Enormer Wind, die Segel bläh!Lasst Wind und Himmel fahren! NurLasst uns Sankt Marie die See!Escolhi a primeira estrofe dessa balada — a ser recitada como uma espécie demelopéia, com melodia composta por Brecht —, pois ilustra um outro elementomuito evidente nesses hinos à vida, a saber, o elemento de orgulho diabólicocaro a todos os aventureiros e marginais de Brecht, o orgulho dos homensabsolutamente descuidados, que só se renderão às forças catastróficas danatureza, e nunca às preocupações cotidianas de uma vida respeitável, e muito
menos às preocupações mais elevadas de uma alma respeitável. Qualquer queseja a filosofia que tenha formado Brecht — em oposição à doutrinas queposteriormente emprestou de Marx e Lênin —, está expressa no Manual dedevoção, nitidamente articulada em dois poemas perfeitos, o “Grande hino deação de graças” e “Contra a tentação”, mais tarde incorporada a A ascensão equeda da cidade de Mahagonny. O “Grande hino” é uma imitação exata dogrande hino religioso barroco de Joachim Neander, Lobe den Herren, que todasas crianças alemãs conhecem de cor. A quinta e última estrofe de Brecht diz:Lobet die Kälte, die Finsternis und das Verderben!Schuet hinan:Es kommet nicht auf euch anUnd ihr Könnt unbesorgt sterben. 41“Contra a tentação” consiste em quatro estrofes de cinco versos, louvando avida, não apesar da, mas graças à morte:Lasst euch nicht verführen!Es gibt keine Wiederkehr.Der Tag steht in den Türen;Ihr könnt schon Nachtwind spüren:Es kommt kein morgen mehr.[...]Was Kann euch Angst noch rühren?Ihr sterbt mit allen TierenUnd es kommt nichts nachher. 42Parece-me que em nenhuma outra parte da literatura moderna encontra-se umacompreensão tão clara de que aquilo que Nietzsche chamou de “a morte deDeus” não leva necessariamente ao desespero mas, pelo contrário, ao eliminar omedo do Inferno, pode desembocar em puro júbilo, num novo “sim” à vida. Vêmà mente duas outras passagens um tanto semelhantes. Numa delas, deDostoiévski, o Demônio fala a Ivan Karamazov em termos quase idênticos:“Todo homem saberá que é totalmente mortal, sem ressurreição, e receberá amorte com orgulho e serenidade, como um deus”. A outra é o agradecimento deSwinburne a:
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menos às preocupações mais elevadas de uma alma respeitável. Qualquer que
seja a filosofia que tenha formado Brecht — em oposição à doutrinas que
posteriormente emprestou de Marx e Lênin —, está expressa no Manual de
devoção, nitidamente articulada em dois poemas perfeitos, o “Grande hino de
ação de graças” e “Contra a tentação”, mais tarde incorporada a A ascensão e
queda da cidade de Mahagonny. O “Grande hino” é uma imitação exata do
grande hino religioso barroco de Joachim Neander, Lobe den Herren, que todas
as crianças alemãs conhecem de cor. A quinta e última estrofe de Brecht diz:
Lobet die Kälte, die Finsternis und das Verderben!
Schuet hinan:
Es kommet nicht auf euch an
Und ihr Könnt unbesorgt sterben. 41
“Contra a tentação” consiste em quatro estrofes de cinco versos, louvando a
vida, não apesar da, mas graças à morte:
Lasst euch nicht verführen!
Es gibt keine Wiederkehr.
Der Tag steht in den Türen;
Ihr könnt schon Nachtwind spüren:
Es kommt kein morgen mehr.
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Was Kann euch Angst noch rühren?
Ihr sterbt mit allen Tieren
Und es kommt nichts nachher. 42
Parece-me que em nenhuma outra parte da literatura moderna encontra-se uma
compreensão tão clara de que aquilo que Nietzsche chamou de “a morte de
Deus” não leva necessariamente ao desespero mas, pelo contrário, ao eliminar o
medo do Inferno, pode desembocar em puro júbilo, num novo “sim” à vida. Vêm
à mente duas outras passagens um tanto semelhantes. Numa delas, de
Dostoiévski, o Demônio fala a Ivan Karamazov em termos quase idênticos:
“Todo homem saberá que é totalmente mortal, sem ressurreição, e receberá a
morte com orgulho e serenidade, como um deus”. A outra é o agradecimento de
Swinburne a: