Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
vergonha de ser alemão, escrito em 1933:Hörend die Reden, die aus deinem Hause dringen, lacht man.Aber wer dich sieht, der greift nach dem Messer. 31Ou num manifesto contra a guerra, dirigido a todos os artistas e escritoresalemães ocidentais e orientais, no inicio dos anos 1950: “A grande Cartagoempreendeu três guerras. Após a primeira guerra ainda era uma grande potência,depois da segunda ainda era habitável. Depois da terceira não restou nenhumtraço dela”. 32 Em duas simples declarações está contida com grande precisãotoda a atmosfera, respectivamente, dos anos 1930 e 1950. E a mesmacomplexidade iluminadora se mostra, talvez ainda mais vigorosamente, naseguinte história, que apareceu anos atrás num número de uma revista novaiorquina.Brecht estava nos Estados Unidos na época dos Processos de Moscoue, é-nos relatado, foi visitar um homem que ainda era da esquerda, masviolentamente anti-stalinista, e se envolvera profundamente nos contraprocessossob os auspícios de Trotski. A conversa girou sobre a evidente inocência dosréus de Moscou, e Brecht, após manter um longo silêncio, finalmente disse:“Quanto mais inocentes são, mais merecem morrer”. A frase soa terrível. Mas oque quis realmente dizer? Os mais inocentes de quê? Do que eram acusados, éclaro. E do que tinham sido acusados? De conspirar contra Stálin. Portanto,exatamente porque não conspiraram contra Stálin, e estavam inocentes desse“crime”, havia uma certa justiça na injustiça. Não era um total dever da “velhaguarda” impedir que um homem, Stálin, convertesse a revolução num gigantescocrime? É desnecessário dizer que o anfitrião de Brecht não entendeu; sentiu-seultrajado e pediu ao convidado que deixasse a casa. Assim perdeu-se uma daspoucas ocasiões em que Brecht realmente se pronunciou contra Stálin, mesmo àsua maneira provocativamente prudente. Temo que Brecht tenha suspirado dealívio ao se ver na rua: sua sorte ainda não o abandonara. 33
iiiEste, então, era o homem: dotado de uma inteligência penetrante, não teórica,não contemplativa, que ia ao centro do assunto, silencioso e relutante em serevelar, distante e provavelmente também tímido, de qualquer forma não muitointeressado em si mesmo, mas incrivelmente curioso (de fato “o Brecht sedentode conhecimento”, como se referiu a si mesmo na “Canção de Salomão”, em Aópera dos três vinténs) e, primeiro e acima de tudo, poeta — isto é, alguém quetem de dizer o indizível, que não consegue ficar quieto nas ocasiões em quetodos estão quietos, e portanto deve ter cuidado em não falar demais sobre coisasde que todos falam. Ele tinha dezesseis anos quando eclodiu a Primeira GuerraMundial, e foi recrutado como ordenança médico no último ano da guerra, demodo que o mundo lhe apareceu primeiramente como cena de uma carnificinainsensata, e a fala surgiu sob o disfarce de declamações vociferantes. (Suaprecoce “Lenda do soldado morto” — um soldado que uma comissão militar demédicos retira de sua tumba e declara apto para o serviço ativo — foi inspiradapor uma observação popular sobre as políticas de recrutamento no final daguerra, “Man gräbt die Toten aus” [“desenterram os mortos”], e ficou como oúnico poema alemão da Primeira Guerra Mundial digno de ser lembrado.) 34 Maso que se tornou decisivo para sua poética inicial foi menos a guerra em si e maiso mundo tal como surgia depois que as “tempestades de aço”, a Stahlgewitter deErnst Jünger, executaram seu trabalho. Esse mundo possuía uma propriedaderaramente levada em consideração, mas que Sartre, após a Segunda GuerraMundial, descreveu com grande precisão: “Quando os instrumentos estãoquebrados e são inutilizáveis, quando os planos voam pelos ares e o esforço nãotem sentido, o mundo aparece com um frescor infantil e terrível, suspenso semrumo num vazio”. (Os anos 1920 na Alemanha tinham muito em comum com osanos 1940 e 1950 na França. O que se deu na Alemanha após a Primeira GuerraMundial foi a ruptura da tradição — uma ruptura que teve de ser reconhecidacomo fato consumado, realidade política, ponto sem retorno —, e é o queocorreu na França 25 anos depois. Politicamente falando, foi o declínio e quedado Estado-nação; socialmente, foi a transformação de um sistema de classesnuma sociedade de massas; espiritualmente, foi a ascensão do niilismo, que porlongo tempo fora preocupação de poucos mas então, subitamente, se convertiaem fenômeno de massas.) Tal como parecia a Brecht, quatro anos de destruiçãotinham limpado o mundo, e as tempestades varreram consigo todos os traçoshumanos, tudo a que alguém poderia se agarrar, inclusive objetos culturais e
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Este, então, era o homem: dotado de uma inteligência penetrante, não teórica,
não contemplativa, que ia ao centro do assunto, silencioso e relutante em se
revelar, distante e provavelmente também tímido, de qualquer forma não muito
interessado em si mesmo, mas incrivelmente curioso (de fato “o Brecht sedento
de conhecimento”, como se referiu a si mesmo na “Canção de Salomão”, em A
ópera dos três vinténs) e, primeiro e acima de tudo, poeta — isto é, alguém que
tem de dizer o indizível, que não consegue ficar quieto nas ocasiões em que
todos estão quietos, e portanto deve ter cuidado em não falar demais sobre coisas
de que todos falam. Ele tinha dezesseis anos quando eclodiu a Primeira Guerra
Mundial, e foi recrutado como ordenança médico no último ano da guerra, de
modo que o mundo lhe apareceu primeiramente como cena de uma carnificina
insensata, e a fala surgiu sob o disfarce de declamações vociferantes. (Sua
precoce “Lenda do soldado morto” — um soldado que uma comissão militar de
médicos retira de sua tumba e declara apto para o serviço ativo — foi inspirada
por uma observação popular sobre as políticas de recrutamento no final da
guerra, “Man gräbt die Toten aus” [“desenterram os mortos”], e ficou como o
único poema alemão da Primeira Guerra Mundial digno de ser lembrado.) 34 Mas
o que se tornou decisivo para sua poética inicial foi menos a guerra em si e mais
o mundo tal como surgia depois que as “tempestades de aço”, a Stahlgewitter de
Ernst Jünger, executaram seu trabalho. Esse mundo possuía uma propriedade
raramente levada em consideração, mas que Sartre, após a Segunda Guerra
Mundial, descreveu com grande precisão: “Quando os instrumentos estão
quebrados e são inutilizáveis, quando os planos voam pelos ares e o esforço não
tem sentido, o mundo aparece com um frescor infantil e terrível, suspenso sem
rumo num vazio”. (Os anos 1920 na Alemanha tinham muito em comum com os
anos 1940 e 1950 na França. O que se deu na Alemanha após a Primeira Guerra
Mundial foi a ruptura da tradição — uma ruptura que teve de ser reconhecida
como fato consumado, realidade política, ponto sem retorno —, e é o que
ocorreu na França 25 anos depois. Politicamente falando, foi o declínio e queda
do Estado-nação; socialmente, foi a transformação de um sistema de classes
numa sociedade de massas; espiritualmente, foi a ascensão do niilismo, que por
longo tempo fora preocupação de poucos mas então, subitamente, se convertia
em fenômeno de massas.) Tal como parecia a Brecht, quatro anos de destruição
tinham limpado o mundo, e as tempestades varreram consigo todos os traços
humanos, tudo a que alguém poderia se agarrar, inclusive objetos culturais e