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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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preocupação pelo mundo.

A fraternidade, que a Revolução Francesa acrescentou à liberdade e à

igualdade que sempre foram categorias da esfera política do homem — essa

fraternidade tem seu lugar natural entre os reprimidos e perseguidos, os

explorados e humilhados, que o século xviii chamava de infelizes, les

malheureux, e o século xix de miseráveis, les misérables. A compaixão, pela

qual tanto Lessing como Rousseau (embora em contextos muito diferentes)

desempenharam um papel tão extraordinário com a descoberta e demonstração

de uma natureza humana comum a todos os homens, tornou-se pela primeira vez

o motivo central dos revolucionários com Robespierre. Desde então, a

compaixão persistiu como parte inseparável e inequívoca da história das

revoluções européias. Ora, a compaixão é inquestionavelmente um afeto

material natural que toca, de forma involuntária, qualquer pessoa normal à vista

do sofrimento, por mais estranho que possa ser o sofredor, e portanto poderia ser

considerada como base ideal para um sentimento que, ao atingir toda a

humanidade, estabeleceria uma sociedade onde os homens realmente poderiam

se tornar irmãos. Através da compaixão, o humanitário com idéias

revolucionárias do século xviii almejava a solidariedade com os infelizes e

miseráveis — um esforço que equivalia a penetrar no próprio domínio da

fraternidade. Mas logo se tornou evidente que esse tipo de humanitarismo, cuja

forma mais pura é privilégio dos párias, não é transmissível e não pode ser

facilmente adquirido por aqueles que não pertencem aos grupos párias. Não

bastam nem a compaixão nem a efetiva participação no sofrimento. Não

podemos discutir aqui o dano que a compaixão introduziu nas revoluções

modernas, com as tentativas de melhorar o quinhão dos infelizes, ao invés de

estabelecer justiça para todos. Mas, para conseguirmos um pouco de perspectiva

sobre nós mesmos e sobre o modo de sentimento moderno, podemos

rapidamente lembrar como o mundo antigo, mais experimentado que nós em

todos os assuntos políticos, encarava a compaixão e o humanitarismo da

fraternidade.

Os tempos modernos e a antiguidade concordam num ponto: ambos encaram a

compaixão como algo totalmente natural, tão inevitável para o homem quanto,

digamos, o medo. Portanto, é ainda mais surpreendente que a antiguidade tenha

assumido uma posição totalmente diferente do grande apreço pela compaixão

nos tempos modernos. Por reconhecerem tão claramente a natureza afetiva da

compaixão, que pode nos dominar como o medo, sem que possamos resistir a

ela, os antigos consideravam a pessoa mais compassiva não mais autorizada a

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