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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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ii

Para começar, devo citar umas poucas, pouquíssimas, circunstâncias

biográficas. Não precisamos entrar na vida pessoal de Brecht, sobre a qual ele

foi mais reticente — menos disposto a comentar — do que qualquer outro autor

do século xx (e essa reticência, como veremos, era uma de suas virtudes, que

aliás eram muitas), mas evidentemente temos de seguir as requintadas

insinuações em seus poemas. Brecht, nascido em 1898, pertencia ao que se

poderia chamar de a primeira das três gerações perdidas. Os homens de sua

geração, cuja iniciação no mundo foram as trincheiras e os campos de batalha da

Primeira Guerra Mundial, inventaram ou adotaram essa expressão pois sentiam

que haviam se tornado incapazes de terem vidas normais; a normalidade era uma

traição a toda a experiência do horror e à camaradagem em meio ao horror, que

os convertera em homens, e, ao invés de trair o que mais indubitavelmente

constituía o seu patrimônio, preferiam se perder — perder-se para si e para o

mundo. Essa atitude, comum aos veteranos de guerra de todos os países, tornouse

uma espécie de clima de opinião ao se revelar que, a eles, sucederam mais

duas “gerações perdidas” semelhantes: a primeira, nascida cerca de dez anos

depois, na primeira década do século, aprendera, com as lições marcantes da

inflação, do desemprego em massa e da inquietação revolucionária, a

instabilidade de tudo o que ficara intacto na Europa após mais de quatro anos de

morticínio; a seguinte, nascida também cerca de dez anos depois, na segunda

década do século, teve a opção de se iniciar no mundo entre os campos de

concentração nazistas, a Guerra Civil Espanhola e os Processos de Moscou.

Esses três grupos, nascidos grosso modo entre 1890 e 1920, tinham idades

suficientemente próximas para formar um único grupo durante a Segunda Guerra

Mundial, como soldados ou refugiados e eLivross, como membros dos

movimentos de resistência ou internados em campos de concentração e

extermínio, ou como civis sob uma chuva de bombas, sobreviventes de cidades

às quais Brecht se referira num poema, décadas antes:

Estivemos vivendo, uma leve geração,

Em casas consideradas imunes à destruição.

(Os esguios edifícios da ilha de Manhattan e as finas antenas

Que entretêm o oceano Atlântico são obras nossas.)

Dessas cidades ficará o que por elas soprou, o vento!

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