Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

sentirmos justificados por falar sobre eles de um ponto de vista político, comocidadãos, mas para uma pessoa fora da área literária parece mais fácil empenharsenessa atividade se as atitudes e compromissos políticos desempenharam umpapel totalmente importante na vida e obra de um autor, como no caso de Brecht.A primeira coisa a ser indicada é que os poetas muitas vezes não foramcidadãos bons e confiáveis; Platão, ele mesmo um grande poeta sob o disfarce dofilósofo, não foi o primeiro a ser gravemente molestado e perturbado por poetas.Sempre houve problemas com eles; com freqüência demonstraram umadeplorável tendência a se comportarem mal, e no século xx seu maucomportamento foi por vezes motivo de preocupações mais profundas para oscidadãos do que em qualquer outra época anterior. Basta-nos lembrar o caso deEzra Pound. O governo dos Estados Unidos decidiu não encaminhá-lo a umjulgamento por traição em tempo de guerra, pois poderia alegar insanidade, como que uma comissão de poetas fez, de certa forma, o que o governo decidira nãofazer — ela o julgou —, e o resultado foi um prêmio a ele por ter escrito amelhor poesia de 1948. Os poetas o homenagearam sem levar em consideraçãoseu mau comportamento ou insanidade. Julgaram o poeta; não era sua tarefajulgar o cidadão. E como eles próprios eram poetas, podiam pensar nos termosde Goethe: “Dichter sündgen nicht schwer”; isto é, os poetas não arcam comuma carga tão pesada de culpa quando se comportam mal — não se deveriamlevar seus pecados tão a sério. Mas o verso de Goethe se referia a pecadosdiferentes, pecados leves, como o que cita Brecht quando, em seu desejoirreprimível de dizer as verdades menos bem-vindas — o que, de fato, era umade suas grandes virtudes —, afirma dirigindo-se às mulheres: “Em mim vocêstêm um homem em quem não podem confiar”, 6 sabendo muito bem que o que asmulheres, em sua maioria, querem dos homens é a confiabilidade — a coisa queos poetas menos podem conceder. Não podem concedê-la porque os que têmcomo atividade o elevar-se devem evitar a força da gravidade. Não devem seprender e, portanto, não podem suportar tanta responsabilidade que é necessáriaaos outros.E Brecht, como agora se mostra, sabia muito bem disso, embora nunca otivesse admitido publicamente. Muitas vezes pensou, disse numa conversa em1934, “num tribunal que me interrogaria: ‘Como é? Você é mesmo sério?’. Entãoeu teria de admitir: Inteiramente sério, não. Há muitíssimos assuntos artísticos,assuntos relativos ao teatro, em que penso ser inteiramente sério. Mas tendorespondido ‘não’ a essa importante pergunta, eu poderia acrescentar umadeclaração ainda mais importante, a saber, que minha atitude é legítima”. Para

esclarecer o que queria dizer, ele propôs o seguinte: “Suponhamos que você leiaum excelente romance político e saiba depois que o autor é Lênin; você mudariade opinião sobre o livro e o autor, em detrimento de ambos”. 7 Mas há pecados epecados. Inegavelmente, os pecados de Ezra Pound eram mais graves; não foiapenas o caso de sucumbir tolamente aos exercícios oratórios de Mussolini. Emseus viciosos programas de rádio, foi muito além dos piores discursos deMussolini, fazendo o jogo de Hitler e demonstrando ser um dos pioresperseguidores dos judeus entre os intelectuais de ambos os lados do Atlântico.Certamente odiava os judeus antes da guerra e, com ela, continuou a odiá-los, eesse ódio é um assunto privado seu, dificilmente com qualquer importânciapolítica. Já é totalmente outra questão alardear esse tipo de aversão ao mundonum momento em que se estava matando judeus aos milhões. Contudo, Poundpodia alegar insanidade e manter sua impunidade em coisas que Brecht,inteiramente são e altamente inteligente, não era capaz de fazer impunemente.Os pecados de Brecht foram menores que os de Pound, mas pecou com maiorgravidade, pois era apenas um poeta, não um louco.Pois, apesar da falta de seriedade, confiabilidade e responsabilidade dospoetas, claro que não podem se comportar com total impunidade. Mas a linha aser traçada dificilmente é um assunto que nós, seus companheiros cidadãos,possamos decidir. Villon quase acabou na forca — sabe Deus se com razão —,mas suas canções ainda alegram nossos corações, e o homenageamos por elas.Não há nenhuma forma mais segura de se fazer de tolo do que montar um códigode conduta para os poetas, embora uma grande quantidade de homens sérios eresponsáveis tenham-no feito. Felizmente para nós e para os poetas, nãoprecisamos chegar a esse problema absurdo, nem temos de confiar em nossospadrões cotidianos de julgamento. Um poeta deve ser julgado pela sua poesia e,embora muito lhe seja permitido, não é verdade que “os que louvam o ultrajetêm vozes primorosas”. Pelo menos não foi verdade no caso de Brecht; suas odesa Stálin, aquele grande pai e assassino de povos, soam como se tivessem sidofabricadas pelo imitador menos talentoso que Brecht jamais teve. O pior quepode acontecer a um poeta é deixar de ser poeta, e foi o que aconteceu a Brechtnos últimos anos de sua vida. Pode ter pensado que as odes a Stálin nãoimportavam. Não tinham sido escritas por medo, e não acreditara sempre quequase tudo se justifica diante da violência? Era essa a sabedoria do seu “sr.Keuner” que, no entanto, por volta de 1930 era ainda um pouco mais exigente naescolha de seus meios do que seu autor vinte anos mais tarde. Em tempossombrios, conta uma das histórias, veio um enviado dos dirigentes até a casa de

sentirmos justificados por falar sobre eles de um ponto de vista político, como

cidadãos, mas para uma pessoa fora da área literária parece mais fácil empenharse

nessa atividade se as atitudes e compromissos políticos desempenharam um

papel totalmente importante na vida e obra de um autor, como no caso de Brecht.

A primeira coisa a ser indicada é que os poetas muitas vezes não foram

cidadãos bons e confiáveis; Platão, ele mesmo um grande poeta sob o disfarce do

filósofo, não foi o primeiro a ser gravemente molestado e perturbado por poetas.

Sempre houve problemas com eles; com freqüência demonstraram uma

deplorável tendência a se comportarem mal, e no século xx seu mau

comportamento foi por vezes motivo de preocupações mais profundas para os

cidadãos do que em qualquer outra época anterior. Basta-nos lembrar o caso de

Ezra Pound. O governo dos Estados Unidos decidiu não encaminhá-lo a um

julgamento por traição em tempo de guerra, pois poderia alegar insanidade, com

o que uma comissão de poetas fez, de certa forma, o que o governo decidira não

fazer — ela o julgou —, e o resultado foi um prêmio a ele por ter escrito a

melhor poesia de 1948. Os poetas o homenagearam sem levar em consideração

seu mau comportamento ou insanidade. Julgaram o poeta; não era sua tarefa

julgar o cidadão. E como eles próprios eram poetas, podiam pensar nos termos

de Goethe: “Dichter sündgen nicht schwer”; isto é, os poetas não arcam com

uma carga tão pesada de culpa quando se comportam mal — não se deveriam

levar seus pecados tão a sério. Mas o verso de Goethe se referia a pecados

diferentes, pecados leves, como o que cita Brecht quando, em seu desejo

irreprimível de dizer as verdades menos bem-vindas — o que, de fato, era uma

de suas grandes virtudes —, afirma dirigindo-se às mulheres: “Em mim vocês

têm um homem em quem não podem confiar”, 6 sabendo muito bem que o que as

mulheres, em sua maioria, querem dos homens é a confiabilidade — a coisa que

os poetas menos podem conceder. Não podem concedê-la porque os que têm

como atividade o elevar-se devem evitar a força da gravidade. Não devem se

prender e, portanto, não podem suportar tanta responsabilidade que é necessária

aos outros.

E Brecht, como agora se mostra, sabia muito bem disso, embora nunca o

tivesse admitido publicamente. Muitas vezes pensou, disse numa conversa em

1934, “num tribunal que me interrogaria: ‘Como é? Você é mesmo sério?’. Então

eu teria de admitir: Inteiramente sério, não. Há muitíssimos assuntos artísticos,

assuntos relativos ao teatro, em que penso ser inteiramente sério. Mas tendo

respondido ‘não’ a essa importante pergunta, eu poderia acrescentar uma

declaração ainda mais importante, a saber, que minha atitude é legítima”. Para

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