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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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sua raison d’être num estado, por assim dizer, de livre flutuação. Era

definitivamente uma espécie de montagem surrealista. O ideal de Benjamin de

produzir uma obra que consistisse inteiramente em citações, montada com tanta

maestria que dispensaria qualquer texto de acompanhamento, pode surpreender

como, no limite, extravagante e, além do mais, autodestrutiva, mas não o era,

não mais que as experiências surrealistas contemporâneas surgidas de impulsos

semelhantes. Na medida em que um texto de acompanhamento do autor se

mostrasse inevitável, era uma questão de modelá-lo de forma a preservar “a

intenção de tais investigações”, a saber, “sondar as profundezas da linguagem e

do pensamento [...] antes perfurando que escavando” (Briefe, vol. i, p. 329), para

não arruinar tudo com explicações que tentassem fornecer uma relação causal ou

sistemática. Assim fazendo, Benjamin tinha plena consciência de que esse novo

método de “perfuração” implicava um certo “forcejar das percepções [...] cujo

pedantismo deselegante, contudo, é preferível ao atual hábito quase universal de

falsificá-las”; era igualmente claro para ele que esse método estava fadado a ser

“a causa de certas obscuridades” (Briefe, vol. i, p. 330). O que lhe importava

acima de tudo era evitar qualquer coisa que pudesse lembrar a empatia, como se

um determinado tema de investigação tivesse uma mensagem de prontidão que

facilmente se comunicaria, ou poderia ser comunicada, ao leitor ou ao

espectador: “Nenhum poema é destinado ao leitor, nenhuma pintura ao

observador, nenhuma sinfonia ao ouvinte” (“A tarefa do tradutor”; grifo meu).

Essa frase, escrita muito cedo, poderia servir de mote a toda a crítica literária

de Benjamin. Não deveria ser mal entendida como uma outra afronta dadaísta a

uma audiência que desde então já se tornara inteiramente habitual em todos os

tipos de efeitos e “simulações” de choque meramente caprichosos. Benjamin

aqui trata de coisas do pensamento, em particular das de natureza lingüística que,

segundo ele, “retêm seu sentido, possivelmente sua melhor significação, se não

são aplicadas a priori exclusivamente ao homem. Por exemplo, alguém poderia

falar de uma vida ou de um momento inesquecível, mesmo que todos os homens

os tivessem esquecido. Se a natureza de uma tal vida ou momento exigisse que

não se os esquecessem, aquele predicado não conteria uma falsidade, mas

simplesmente uma reivindicação que não está sendo preenchida pelos homens, e

talvez também uma referência a um âmbito onde é preenchida: a recordação de

Deus” (ibid.). Benjamin mais tarde renunciou a essa base teológica, mas não à

teoria nem ao seu método de perfurar para obter o essencial sob a forma de

citação — como se obtém água perfurando-se até uma fonte oculta nas

profundezas da terra. Esse método é como o equivalente moderno das

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