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ii
A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito
público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de
pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos
seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles
se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o
âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por
assim dizer, procurar por trás deles — como se o mundo fosse apenas uma
fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder —, chegar a
entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo
mundo que se encontra entre eles. Em tais tempos, se as coisas vão bem,
desenvolve-se um tipo específico de humanidade. Para avaliar adequadamente
suas possibilidades, pensemos apenas em Nathan, o Sábio, cujo verdadeiro tema
— “Basta ser um homem” — permeia a peça. A esse tema corresponde o apelo
“Seja meu amigo”, que percorre como um leitmotiv toda a peça. Poderíamos
pensar igualmente em A flauta mágica, que, de modo similar, tem como tema
essa humanidade, mais profunda do que geralmente pensamos quando
consideramos apenas as teorias usuais do século xviii sobre uma natureza
humana básica subjacente à multiplicidade de nações, povos, raças e religiões
em que se divide a espécie humana. Se existisse tal natureza humana, seria um
fenômeno natural, e, ao se chamar o comportamento de acordo com ela de
“humano”, estar-se-ia afirmando que o comportamento humano e o
comportamento natural são um único e mesmo comportamento. No século xviii,
o maior e historicamente mais efetivo defensor desse tipo de humanidade foi
Rousseau, para quem a natureza humana comum a todos os homens se
manifestava não na razão, mas na compaixão, numa aversão inata, conforme
colocou, a ver um companheiro humano suportando sofrimentos. Em
consonância notável, Lessing também declarou que a melhor pessoa é a mais
compassiva. Mas Lessing se perturbava com o caráter igualitário da compaixão
— o fato de que, como ressaltou, sentimos “algo próximo à compaixão” também
pelo malfeitor. Isso não incomodou Rousseau. No espírito da Revolução
Francesa, que se apoiou em suas idéias, ele via a fraternité como a realização
plena da humanidade. Lessing, por outro lado, considerava a amizade — tão
seletiva quanto a compaixão é igualitária — como o fenômeno central em que,
somente aí, a verdadeira humanidade pode provar a si mesma.
Antes de nos voltarmos para o conceito de amizade de Lessing e sua