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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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ii

A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito

público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de

pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos

seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles

se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o

âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por

assim dizer, procurar por trás deles — como se o mundo fosse apenas uma

fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder —, chegar a

entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo

mundo que se encontra entre eles. Em tais tempos, se as coisas vão bem,

desenvolve-se um tipo específico de humanidade. Para avaliar adequadamente

suas possibilidades, pensemos apenas em Nathan, o Sábio, cujo verdadeiro tema

— “Basta ser um homem” — permeia a peça. A esse tema corresponde o apelo

“Seja meu amigo”, que percorre como um leitmotiv toda a peça. Poderíamos

pensar igualmente em A flauta mágica, que, de modo similar, tem como tema

essa humanidade, mais profunda do que geralmente pensamos quando

consideramos apenas as teorias usuais do século xviii sobre uma natureza

humana básica subjacente à multiplicidade de nações, povos, raças e religiões

em que se divide a espécie humana. Se existisse tal natureza humana, seria um

fenômeno natural, e, ao se chamar o comportamento de acordo com ela de

“humano”, estar-se-ia afirmando que o comportamento humano e o

comportamento natural são um único e mesmo comportamento. No século xviii,

o maior e historicamente mais efetivo defensor desse tipo de humanidade foi

Rousseau, para quem a natureza humana comum a todos os homens se

manifestava não na razão, mas na compaixão, numa aversão inata, conforme

colocou, a ver um companheiro humano suportando sofrimentos. Em

consonância notável, Lessing também declarou que a melhor pessoa é a mais

compassiva. Mas Lessing se perturbava com o caráter igualitário da compaixão

— o fato de que, como ressaltou, sentimos “algo próximo à compaixão” também

pelo malfeitor. Isso não incomodou Rousseau. No espírito da Revolução

Francesa, que se apoiou em suas idéias, ele via a fraternité como a realização

plena da humanidade. Lessing, por outro lado, considerava a amizade — tão

seletiva quanto a compaixão é igualitária — como o fenômeno central em que,

somente aí, a verdadeira humanidade pode provar a si mesma.

Antes de nos voltarmos para o conceito de amizade de Lessing e sua

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