23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

da ruptura da tradição — assim na Alemanha, e não apenas lá primeiramente por

Martin Heidegger, cujo êxito extraordinário e extraordinariamente precoce nos

anos 1920 se deveu essencialmente a uma “escuta da tradição que não se entrega

ao passado, mas pensa sobre o presente”. 31 Sem percebê-lo, Benjamin realmente

tinha mais em comum com o notável senso de Heidegger para os olhos e ossos

vivos que marinhamente se transformaram em coral e pérolas, e como tal só

podiam ser recolhidos e alçados ao presente com uma violência ao seu contexto,

interpretando-os com “o impacto fatal” de novos pensamentos, do que com as

sutilezas dialéticas de seus amigos marxistas. Pois assim como a frase de

encerramento do ensaio sobre Goethe, antes citada, soa como se fosse de Kafka,

as palavras seguintes de uma carta a Hofmannsthal, datada de 1924, fazem

pensar em alguns dos ensaios de Heidegger escritos entre os anos 1940 e 1950:

“A convicção que me guia em minhas tentativas literárias [...] [é] a de que cada

verdade tem seu lar, seu palácio ancestral, na linguagem, que esse palácio foi

construído com os mais antigos logoi, e que para uma verdade assim fundada as

percepções das ciências sempre serão inferiores enquanto fizerem andar aqui e

acolá pela área da linguagem, digamos como nômades, na crença do caráter

sígnico da linguagem que produz a arbitrariedade irresponsável de sua

terminologia” (Briefe, vol. i, p. 329). No espírito das primeiras obras de

Benjamin sobre a filosofia da linguagem, as palavras são “o oposto de toda

comunicação dirigida para o exterior”, assim como a verdade é “a morte da

intenção”. Quem procura a verdade se assemelha ao homem na fábula sobre o

quadro velado em Saïs: “isso se deve não a alguma monstruosidade misteriosa

do conteúdo a ser desvelada, mas à natureza da verdade ante a qual mesmo a

chama mais pura da busca se extingue como sob a água” (Schriften vol. i, pp.

131, 152).

A partir do ensaio sobre Goethe, as citações estão no centro de toda a obra de

Benjamin. Esse próprio fato diferencia seus textos de todos os tipos de obras

eruditas, onde a função das citações é verificar e documentar opiniões, e por isso

podem ser seguramente relegadas às notas. Isso está fora de questão em

Benjamin. Quando trabalhava em seu estudo sobre a tragédia alemã, gabou-se de

uma coleção de “mais de seiscentas citações muito sistemática e claramente

organizadas” (Briefe, vol. i, p. 339); como os cadernos de notas posteriores, essa

coleção não era um acúmulo de excertos destinados a facilitar o texto do estudo,

mas constituía o trabalho principal, tendo o texto como algo secundário. O

trabalho principal consistia em arrancar fragmentos do seu contexto e dispô-los

novamente de modo tal que se ilustrassem reciprocamente e pudessem provar

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!