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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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que ocorreu no início do século xx — já o liberara dessa tarefa de destruição, e

só lhe foi preciso, por assim dizer, inclinar-se para selecionar seus preciosos

fragmentos entre o monte de destroços. Em outras palavras, as próprias coisas

ofereciam, principalmente a um homem que encarava o presente com firmeza,

um aspecto que antes só poderia ser descoberto a partir da perspectiva

extravagante do colecionador.

Não sei quando Benjamin descobriu a notável coincidência entre suas

inclinações antiquadas e a realidade dos tempos; deve ter sido em meados dos

anos 1920, quando iniciou o estudo sério de Kafka, apenas para logo depois

descobrir em Brecht o poeta que estava mais à vontade no século xx. Não

pretendo afirmar que Benjamin desviou sua ênfase da coleção de livros para a

coleção de citações (exclusiva dele) em um dia ou mesmo em um ano, embora

haja algumas evidências nas cartas de uma alteração consciente dessa ênfase. De

qualquer forma, nada lhe era mais característico nos anos 1930 do que os

pequenos cadernos de notas, com capas pretas, que sempre levava consigo e

onde incansavelmente introduzia, sob forma de citação, o que a leitura e a vida

diária lhe rendiam como “pérolas” e “coral”. Por vezes lia-as alto, mostrava-as

como artigos de uma coleção seleta e preciosa. E nessa coleção, que então era

tudo, menos extravagante, era fácil encontrar junto a um obscuro poema de amor

do século xviii a última notícia dos jornais; junto a “Der erste Schnee” de

Goecking uma reportagem de Viena, datada do verão de 1939, dizendo que a

companhia de gás local tinha “parado de fornecer gás aos judeus. O consumo de

gás da população judaica significava um prejuízo para a companhia de gás, visto

que os maiores consumidores eram os que não pagavam suas contas. Os judeus

usavam o gás principalmente para cometer suicídio” (Briefe, vol. ii, p. 820).

Aqui realmente as sombras dos mortos eram invocadas apenas a partir do poço

de sacrifícios do presente.

A íntima afinidade entre a ruptura da tradição e a figura aparentemente

extravagante do colecionador que reúne seus fragmentos e restos dos destroços

do passado talvez seja mais bem ilustrada pelo fato, espantoso apenas à primeira

vista, de que provavelmente não houve nenhum período antes do nosso em que

coisas velhas e antigas, muitas delas há tempos esquecidas pela tradição,

tornaram-se material didático geral, distribuído a escolares de todos os lugares

em centenas de milhares de exemplares. Essa surpreendente revivescência, em

particular da cultura clássica, que desde os anos 1940 se percebe em especial nos

Estados Unidos relativamente desprovidos de tradição, começou na Europa nos

anos 1920. Lá foi iniciada pelos mais conscientes quanto ao caráter irreparável

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