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como se poderia supor à primeira vista.
Pois a tradição ordena o passado não apenas cronológica, mas antes de tudo
sistematicamente, ao separar o positivo do negativo, o ortodoxo do herético, o
que é obrigatório e relevante dentre a massa de opiniões e dados irrelevantes ou
simplesmente interessantes. A paixão do colecionador, por outro lado, é não só
assistemática, como beira o caótico, não tanto por ser uma paixão, mas por não
ser basicamente inflamada pela qualidade do objeto — algo classificável —, e
sim atiçada pela sua “autenticidade”, sua qualidade única, algo que desafia
qualquer classificação sistemática. Por conseguinte, enquanto a tradição
discrimina, o colecionar nivela todas as diferenças; e esse nivelamento — de
forma que “o positivo e o negativo [...] a predileção e a rejeição aqui são
intimamente contíguas” (Schriften, vol. ii, p. 313) — ocorre mesmo quando o
colecionador escolhe a tradição como seu campo específico e cuidadosamente
elimina tudo que não seja por ela reconhecido. À tradição o colecionador opõe o
critério de autenticidade; à autoridade, contrapõe o signo da origem. Para
exprimir esse modo de pensar em termos teóricos: ele substitui o conteúdo pela
pura originalidade ou autenticidade, coisa que apenas o existencialismo francês
estabeleceu como qualidade per se destacada de todas as características
específicas. Se se leva esse modo de pensar à sua conclusão lógica, o resultado é
uma estranha inversão da direção inicial do colecionador: “O quadro autêntico
pode ser antigo, mas o autêntico pensamento é novo. Pertence ao presente. É
certo que o presente pode ser pobre e considerado o certo. Mas, como quer que
seja, é preciso agarrá-lo firmemente pelos chifres, para poder consultar o
passado. É o touro cujo sangue deve preencher o poço para que as sombras dos
mortos possam aparecer à sua borda” (Schriften, vol. ii, p. 314). Desse passado,
quando sacrificado para a invocação do passado, surge então “o impacto fatal do
pensamento” dirigido contra a tradição e a autoridade do passado.
Assim o herdeiro e preservador inesperadamente se converte em um
destruidor. “A verdadeira paixão muito mal compreendida do colecionador é
sempre anárquica, destrutiva. Pois essa é sua dialética: combinar com a lealdade
a um objeto, a artigos individuais, a coisas protegidas pelo seu cuidado, um
obstinado protesto subversivo contra o típico, o classificável.” 30 O colecionador
destrói o contexto onde seu objeto outrora apenas fez parte de uma entidade viva
maior, e como somente o único genuíno interessa a ele, é preciso purificar o
objeto escolhido de tudo o que há de típico nele. A figura do colecionador, tão
antiquada quanto a do flâneur, podia assumir traços tão eminentemente
modernos em Benjamin porque a própria história — isto é, a ruptura da tradição