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como ele não estava interessado em psicologia infantil nem em psiquiatria, esses
livros, como muitos outros entre seus tesouros, literalmente não serviam para
nada, nem para divertir, nem para instruir.) Intimamente relacionado a isso está o
caráter de fetiche que Benjamin explicitamente atribuía aos objetos
colecionados. O valor de autenticidade, decisivo para o colecionador e também
para o mercado determinado por ele, substituiu o “valor de culto” e é sua
secularização.
Essas reflexões, como muitas outras em Benjamin, têm um certo brilho
engenhoso que não é característico de suas percepções essenciais que, em sua
maioria, são absolutamente aterradas ao mundo. Contudo, são exemplos
surpreendentes da flânerie em seu pensamento, da forma como operava sua
mente quando, como o flâneur pela cidade, confiava-se ao caso como guia de
suas viagens intelectuais de exploração. Assim como o passeio por entre os
tesouros do passado é o privilégio luxuoso do herdeiro, da mesma forma a
“atitude do colecionador, no sentido mais elevado, [é] a atitude do herdeiro”
(“Desempacotando minha biblioteca”), que, ao tomar posse das coisas — e “a
propriedade é a relação mais profunda que se pode ter com os objetos” (ibid.) —,
estabelece-se no passado, de modo a conseguir “uma renovação do velho
mundo” imperturbado pelo presente. E visto que esse “impulso mais profundo”
do colecionador não tem qualquer significação pública, mas consiste num
passatempo estritamente privado, tudo “o que se diz do ângulo do verdadeiro
colecionador” está destinado a aparecer como tão “extravagante” quanto a visão
tipicamente jeanpauliana de um daqueles escritores “que escrevem livros não por
serem pobres, mas porque estão insatisfeitos com os livros que poderiam
comprar, mas dos quais não gostam” (ibid.). Num exame mais detido, porém,
essa extravagância tem algumas peculiaridades notáveis e não tão inofensivas.
De um lado, há a atitude, tão significativa numa época publicamente sombria,
com que o colecionador não só se retira do público para a privacidade de suas
quatro paredes, mas leva consigo, para decorá-las, todos os tipos de tesouros que
outrora eram de propriedade pública. (Este, evidentemente, não é o atual
colecionador, que se apodera de tudo que tem ou, segundo seus cálculos, terá um
valor de mercado ou que pode realçar seu status social, mas sim o colecionador
que, como Benjamin, busca coisas estranhas consideradas sem valor.) E ainda,
na sua paixão pelo passado por seu próprio bem, nascida do desdém pelo
presente enquanto tal e portanto negligenciando a qualidade objetiva, já aparece
um fator perturbador a anunciar que a tradição pode ser a última coisa a guiá-lo e
que os valores tradicionais de forma alguma estarão tão seguros em suas mãos