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inesperadamente uma pesada garra” contra ela. Mesmo esse mergulho de Kafka
até o fundo do oceano do passado tinha essa singular dualidade de querer
preservar e querer destruir. Queria preservá-la, mesmo que não fosse a verdade,
mesmo que apenas em prol dessa “nova beleza no que está desaparecendo” (ver
o ensaio de Benjamin sobre Leskov); e sabia, por outro lado, que não há nenhum
modo mais eficaz de romper a magia da tradição do que recortando o “rico e
estranho”, coral e pérolas, daquilo que fora transmitido numa única peça maciça.
Benjamin exemplificou essa ambigüidade de atitudes em relação ao passado
analisando a paixão do colecionador, em que consistia a sua própria paixão. O
colecionar se origina de uma diversidade de motivos que não são facilmente
compreendidos. Como Benjamin foi provavelmente o primeiro a ressaltar, o
colecionar é a paixão das crianças, para quem as coisas ainda não são
mercadorias e não são avaliadas segundo sua utilidade, e também o passatempo
dos ricos, que possuem o suficiente para não precisar de nada útil e portanto
podem se permitir fazer da “transfiguração de objetos” (Schriften, vol. i, p. 416)
o seu negócio. Nisso têm de descobrir, por necessidade, o belo, que para ser
reconhecido demanda um prazer desinteressado” (Kant). Em qualquer caso, um
objeto colecionado possui apenas um valor diletante e nenhum valor de uso,
qualquer que seja. (Benjamin ainda não tinha consciência do fato de que a
coleção também pode ser uma forma de investimento eminentemente segura e
muitas vezes altamente lucrativa.) E na medida em que o colecionar pode se
voltar para qualquer categoria de objetos (não só objetos de arte, que de qualquer
forma são retirados do mundo cotidiano dos objetos de uso por não serem
“bons” para nada) e portanto, por assim dizer, redimir o objeto como coisa, visto
não ser mais um meio para um fim, mas ter um valor intrínseco, Benjamin podia
entender a paixão do colecionador como uma atitude semelhante à do
revolucionário. Como o revolucionário, o colecionador “sonha com o seu
caminho não só para um mundo remoto ou passado, mas ao mesmo tempo para
um mundo melhor onde certamente as pessoas estão providas do que precisam
como no mundo cotidiano, mas onde as coisas estão liberadas do trabalho
humilhante da utilidade” (Schriften, vol. i, p. 416). O colecionar é a redenção das
coisas que complementaria a redenção do homem. Mesmo a leitura dos livros é
algo questionável para um verdadeiro bibliófilo: “‘E você leu todos esses?’,
dizem que perguntou a Anatole France um admirador de sua biblioteca. ‘Nem
um décimo deles. Suponho que você não use porcelana de Sèvres todos os dias,
não?’” (“Desempacotando minha biblioteca”). (Na biblioteca de Benjamin havia
coleções de livros infantis raros e livros de autores mentalmente perturbados;