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nos termos da tradição judaica, onde sempre teve o odor de algo totalmente
vergonhoso. Nada, além da escolha desses campos de estudos, mostrava mais
claramente — assim tem-se a tendência de dizer hoje em dia — que não existia
algo como um “retorno”, fosse à tradição judaica ou à tradição alemã ou
européia. Era uma admissão implícita de que o passado só falava diretamente
através de coisas que não haviam se transmitido, cuja aparente proximidade do
presente se devia, pois, precisamente ao seu caráter exótico, que excluía
qualquer reivindicação de autoridade obrigatória. As verdades obrigatórias
foram substituídas pelo que, em algum sentido, era significativo ou interessante,
e isso evidentemente significava — como Benjamin sabia melhor do que
ninguém — que a “consistência da verdade [...] se perdeu” (Briefe, vol. ii, p.
763). O que se destacava entre as propriedades que formavam essa “consistência
da verdade” era que, pelo menos para Benjamin, cujo interesse filosófico inicial
tinha inspiração teológica, a verdade se referia a um segredo e que a revelação
desse segredo possuía autoridade. A verdade, disse Benjamin logo antes de se
tornar plenamente consciente da ruptura irreparável da tradição e da perda de
autoridade, não é “um desvelamento que destrói o segredo, mas a revelação que
lhe faz justiça” (Schriften, vol. i, p.146). Uma vez vinda essa verdade ao mundo
humano no momento apropriado da história — seja como a a-letheia grega,
visualmente perceptível aos olhos da mente e compreendida por nós como “desocultação”
(“Unverborgenheit”, Heidegger), ou como a palavra acusticamente
perceptível de Deus, tal como a conhecemos a partir das religiões reveladas
européias —, era essa “consistência” peculiar a ela que a fazia tangível, por
assim dizer, de modo a poder ser transmitida pela tradição. A tradição transforma
a verdade em sabedoria, e a sabedoria é a consistência da verdade transmissível.
Em outras palavras, mesmo que a verdade aparecesse em nosso mundo, não
levaria à sabedoria, pois não possui mais as características que só poderia
adquirir com o reconhecimento universal de sua validade. Benjamin discute
esses assuntos em relação a Kafka e diz que, evidentemente, “Kafka estava longe
de ser o primeiro a encarar essa situação. Muitos se acomodaram a ela, aderindo
à verdade ou ao que quer que considerassem verdade num dado momento, de
coração mais ou menos pesado, renunciando à sua transmissibilidade. O
verdadeiro gênio de Kafka foi ter tentado algo inteiramente novo: sacrificou a
verdade a favor da adesão à transmissibilidade” (Briefe, vol. ii, p. 763). Fê-lo
executando alterações decisivas em parábolas tradicionais ou inventando novas
parábolas em estilo tradicional; 29 contudo, estas “não se estendem modestamente
aos pés da doutrina”, como os contos hagádicos do Talmude, mas “levantam