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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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batizar”. Mas mesmo que desse certo, mesmo que se pudesse expor e evitar a

hipocrisia desse ambiente — o que se ganharia com isso? Um “salto dentro da

literatura hebraica moderna” era impossível para a geração da época. Portanto:

“Nossa relação com a Alemanha é a de um amor não correspondido. Sejamos

viris o suficiente para finalmente arrancar o amado de nossos corações, [...]

coloquei o que devemos querer fazer; também coloquei por que não podemos

querê-lo. Minha intenção foi a de indicar o problema. Não é por minha culpa que

não conheço a solução”. (Quanto a ele mesmo, Herr Goldstein resolveu o

problema seis anos depois, tornando-se editor de cultura de Vossische Zeitung. O

que mais poderia fazer?)

Seria possível se descartar de Moritz Goldstein dizendo que ele simplesmente

reproduziu o que Benjamin, em outro contexto, chamou de “uma parcela

importante da ideologia anti-semita vulgar, bem como da ideologia sionista”

(Briefe, vol. i, pp. 152-3), se não se encontrassem em Kafka, a um nível muito

mais sério, uma formulação semelhante do mesmo problema e a mesma

confissão de sua insolubilidade. Numa carta a Max Brod sobre escritores

judaico-alemães, disse que a questão judaica ou “O desespero sobre ela era a

inspiração deles — uma inspiração tão respeitável como qualquer outra, mas,

com um exame mais próximo, cheia de singularidades penosas. Por uma razão,

aquilo em que se descarregava seu desespero não podia ser a literatura alemã que

parecia ser à superfície”, pois o problema não era realmente um problema

alemão. Assim viviam “entre três impossibilidades [...] : a impossibilidade de

não escrever”, quando só podiam se libertar de sua inspiração ao escrever; “a

impossibilidade de escrever em alemão” — Kafka considerava seu uso da língua

alemã como a “usurpação aberta ou oculta, ou possivelmente automartirizadora

de uma propriedade alheia, que não foi adquirida, mas sim roubada, agarrada

(relativamente) rápido e que continua a ser posse de outrem, mesmo que não se

consiga indicar um único erro lingüístico”, e finalmente “a impossibilidade de

escrever diferente”, visto que não havia nenhuma outra língua disponível. Quase

se poderia acrescentar uma quarta impossibilidade”, diz Kafka como conclusão,

“a impossibilidade de escrever, pois esse desespero não era algo que pudesse ser

mitigado pelo escrever” — como é normal para os poetas, a quem foi dado um

deus que diz o que sofrem e suportam os homens. Aqui, o desespero se

converteu antes em “um inimigo da vida e do escrever; o escrever aqui era

apenas uma moratória, como para alguém que escreve seu testamento logo antes

de se enforcar”. 17

Nada seria mais fácil do que demonstrar que Kafka estava errado e que sua

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