Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
Praga e que não se consegue manter distante das crianças [...] essa mentalidademesquinha, suja, velhaca”. 15O que aí estava envolvido, então, era o que desde os anos 1870 ou 1880 forachamado de a questão judaica, e só existia daquela forma na Europa central delíngua alemã daquelas décadas. Hoje essa questão foi, por assim dizer, lavadapela catástrofe do povo judeu europeu e está justamente esquecida, embora aindase encontre ocasionalmente na linguagem da geração mais antiga de sionistasalemães cujos hábitos de pensamento derivam das primeiras décadas do século.Ademais, nunca foi senão uma preocupação da intelligentsia judaica e não tevenenhuma significação para a maioria do povo judeu da Europa central. Para osintelectuais, contudo, ela tinha grande importância, pois seu próprio judaísmo,que dificilmente desempenhava algum papel em seu espaço espiritual,determinava extraordinariamente sua vida social e, portanto, apresentava-se aeles como uma questão moral de primeira ordem. Sob essa forma moral, aquestão judaica marcou, segundo as palavras de Kafka, “a terrível condiçãointerior dessas gerações”. 16 Por mais insignificante que tal problema possa nosparecer, em vista do que mais tarde realmente ocorreu, não podemos aquidesconsiderá-lo, pois nem Benjamin, nem Kafka, nem Karl Kraus podem serentendidos sem ele. Por uma questão de simplicidade, colocarei o problemaexatamente como foi colocado e interminavelmente discutido na época — asaber, num artigo intitulado “Deustsch-jüdischer Parnass” (“Parnaso judaicoalemão”),que provocou um grande alvoroço quando foi publicado em 1912 porMoritz Goldstein no importante periódico Der Kunstwart.Segundo Goldstein, o problema tal como aparecia para a intelligentsia judaicatinha um duplo aspecto, o ambiente não judaico e a sociedade judaicaassimilada, e do seu ponto de vista o problema era insolúvel. Com respeito aoambiente não judaico, “Nós judeus administramos a propriedade intelectual deum povo que nos nega o direito e a capacidade de fazê-lo”. E adiante: “É fácilmostrar o absurdo dos argumentos de nossos adversários e provar que suainimizade é infundada. O que se ganharia com isso? Que seu ódio é genuíno.Quando todas as calúnias forem refutadas, todas as distorções retificadas, todosos falsos juízos sobre nós rejeitados, a antipatia permanecerá como algoirrefutável. Quem não o percebe, fica desprotegido”. Era o fracasso em perceberisso que era tido como insuportável na sociedade judaica, cujos representantes,de um lado, queriam permanecer judeus e, de outro, não desejavam reconhecerseu judaísmo: “Insistiremos abertamente sobre o problema ao qual eles seesquivam dentro de si. Nós os obrigaremos a confessar seu judaísmo ou a se
batizar”. Mas mesmo que desse certo, mesmo que se pudesse expor e evitar ahipocrisia desse ambiente — o que se ganharia com isso? Um “salto dentro daliteratura hebraica moderna” era impossível para a geração da época. Portanto:“Nossa relação com a Alemanha é a de um amor não correspondido. Sejamosviris o suficiente para finalmente arrancar o amado de nossos corações, [...]coloquei o que devemos querer fazer; também coloquei por que não podemosquerê-lo. Minha intenção foi a de indicar o problema. Não é por minha culpa quenão conheço a solução”. (Quanto a ele mesmo, Herr Goldstein resolveu oproblema seis anos depois, tornando-se editor de cultura de Vossische Zeitung. Oque mais poderia fazer?)Seria possível se descartar de Moritz Goldstein dizendo que ele simplesmentereproduziu o que Benjamin, em outro contexto, chamou de “uma parcelaimportante da ideologia anti-semita vulgar, bem como da ideologia sionista”(Briefe, vol. i, pp. 152-3), se não se encontrassem em Kafka, a um nível muitomais sério, uma formulação semelhante do mesmo problema e a mesmaconfissão de sua insolubilidade. Numa carta a Max Brod sobre escritoresjudaico-alemães, disse que a questão judaica ou “O desespero sobre ela era ainspiração deles — uma inspiração tão respeitável como qualquer outra, mas,com um exame mais próximo, cheia de singularidades penosas. Por uma razão,aquilo em que se descarregava seu desespero não podia ser a literatura alemã queparecia ser à superfície”, pois o problema não era realmente um problemaalemão. Assim viviam “entre três impossibilidades [...] : a impossibilidade denão escrever”, quando só podiam se libertar de sua inspiração ao escrever; “aimpossibilidade de escrever em alemão” — Kafka considerava seu uso da línguaalemã como a “usurpação aberta ou oculta, ou possivelmente automartirizadorade uma propriedade alheia, que não foi adquirida, mas sim roubada, agarrada(relativamente) rápido e que continua a ser posse de outrem, mesmo que não seconsiga indicar um único erro lingüístico”, e finalmente “a impossibilidade deescrever diferente”, visto que não havia nenhuma outra língua disponível. Quasese poderia acrescentar uma quarta impossibilidade”, diz Kafka como conclusão,“a impossibilidade de escrever, pois esse desespero não era algo que pudesse sermitigado pelo escrever” — como é normal para os poetas, a quem foi dado umdeus que diz o que sofrem e suportam os homens. Aqui, o desespero seconverteu antes em “um inimigo da vida e do escrever; o escrever aqui eraapenas uma moratória, como para alguém que escreve seu testamento logo antesde se enforcar”. 17Nada seria mais fácil do que demonstrar que Kafka estava errado e que sua
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Praga e que não se consegue manter distante das crianças [...] essa mentalidade
mesquinha, suja, velhaca”. 15
O que aí estava envolvido, então, era o que desde os anos 1870 ou 1880 fora
chamado de a questão judaica, e só existia daquela forma na Europa central de
língua alemã daquelas décadas. Hoje essa questão foi, por assim dizer, lavada
pela catástrofe do povo judeu europeu e está justamente esquecida, embora ainda
se encontre ocasionalmente na linguagem da geração mais antiga de sionistas
alemães cujos hábitos de pensamento derivam das primeiras décadas do século.
Ademais, nunca foi senão uma preocupação da intelligentsia judaica e não teve
nenhuma significação para a maioria do povo judeu da Europa central. Para os
intelectuais, contudo, ela tinha grande importância, pois seu próprio judaísmo,
que dificilmente desempenhava algum papel em seu espaço espiritual,
determinava extraordinariamente sua vida social e, portanto, apresentava-se a
eles como uma questão moral de primeira ordem. Sob essa forma moral, a
questão judaica marcou, segundo as palavras de Kafka, “a terrível condição
interior dessas gerações”. 16 Por mais insignificante que tal problema possa nos
parecer, em vista do que mais tarde realmente ocorreu, não podemos aqui
desconsiderá-lo, pois nem Benjamin, nem Kafka, nem Karl Kraus podem ser
entendidos sem ele. Por uma questão de simplicidade, colocarei o problema
exatamente como foi colocado e interminavelmente discutido na época — a
saber, num artigo intitulado “Deustsch-jüdischer Parnass” (“Parnaso judaicoalemão”),
que provocou um grande alvoroço quando foi publicado em 1912 por
Moritz Goldstein no importante periódico Der Kunstwart.
Segundo Goldstein, o problema tal como aparecia para a intelligentsia judaica
tinha um duplo aspecto, o ambiente não judaico e a sociedade judaica
assimilada, e do seu ponto de vista o problema era insolúvel. Com respeito ao
ambiente não judaico, “Nós judeus administramos a propriedade intelectual de
um povo que nos nega o direito e a capacidade de fazê-lo”. E adiante: “É fácil
mostrar o absurdo dos argumentos de nossos adversários e provar que sua
inimizade é infundada. O que se ganharia com isso? Que seu ódio é genuíno.
Quando todas as calúnias forem refutadas, todas as distorções retificadas, todos
os falsos juízos sobre nós rejeitados, a antipatia permanecerá como algo
irrefutável. Quem não o percebe, fica desprotegido”. Era o fracasso em perceber
isso que era tido como insuportável na sociedade judaica, cujos representantes,
de um lado, queriam permanecer judeus e, de outro, não desejavam reconhecer
seu judaísmo: “Insistiremos abertamente sobre o problema ao qual eles se
esquivam dentro de si. Nós os obrigaremos a confessar seu judaísmo ou a se