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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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sua base material de modo tão catastrófico, e assim a paixão puramente

intelectual que torna tão adorável essa figura pudesse se desdobrar em todas as

suas possibilidades mais expressivas e impressionantes.

Certamente não faltaram razões para se rebelar contra suas origens, o ambiente

da sociedade judaico-alemã na Alemanha imperial, onde cresceu Benjamin, nem

faltariam justificativas para uma posição contra a República de Weimar, na qual

se recusou a assumir uma profissão. Em Uma infância berlinense em torno de

1900, Benjamin descreve a casa de que proviera como um “mausoléu há muito

destinado a mim” (Schriften, vol. i, p. 643). De modo bastante característico, seu

pai era antiquário e negociante de arte; era uma família rica e assimilada como

tantas outras; um de seus avós era ortodoxo, o outro pertencia a uma

congregação reformada. “Em minha infância fui um prisioneiro entre o velho e o

novo Ocidente. Naqueles dias meu clã habitava nesses dois bairros com uma

atitude mesclada de obstinação e autoconfiança, transformando-os num gueto

que considerava como seu feudo” (Schriften, vol. i, p. 643). A obstinação se

referia ao seu judaísmo; era apenas a obstinação que os fazia a ele se apegarem.

A autoconfiança era inspirada pela sua posição no ambiente não judeu onde,

afinal, tinham realizado um tanto de coisas. Esse tanto se mostrava nos dias em

que havia convidados. Nessas ocasiões, o interior do guarda-louças, que parecia

ser o centro da casa e, assim, “com boas razões se assemelhava às montanhas do

templo”, ficava aberto e então era possível “exibir tesouros tais como ídolos com

que ficariam rodeados”. Assim aparecia “o estoque de prata da casa”, e o que se

exibia lá era não dez, mas vinte ou trinta vezes mais. E quando eu olhava para

essas longas, longas filas de colherinhas de café ou descansos de facas, garfos

para ostras ou facas para frutas, o gozo dessa profusão se debatia com o medo de

que os esperados pudessem todos parecer iguais, como o nosso faqueiro”

(Schriften, vol. i, p. 632). Até o menino sabia que havia algo radicalmente

errado, e não só porque havia gente pobre (“Os pobres — para as crianças ricas

da minha idade, eles só existiam como mendigos. E foi um grande avanço na

minha compreensão quando, pela primeira vez, a pobreza mostrou-se a mim sob

a ignomínia do trabalho mal pago” [Schriften, vol. i, p. 632]), mas porque a

“obstinação” por dentro e a “autoconfiança” por fora produziam uma atmosfera

de insegurança e autoconsciência que realmente não era nada conveniente para a

educação das crianças. Isso foi verdadeiro não só para Benjamin ou Berlim

Oeste 14 ou para a Alemanha. Com que paixão Kafka tentou persuadir sua irmã a

colocar seu filho de dez anos de idade num internato, de forma a protegê-lo da

“mentalidade especial que é particularmente virulenta entre os judeus ricos de

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