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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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negócios com os marxistas. O fato de, ainda que arruinado, nada ter feito a

seguir é digno de admiração, e igualmente admirável é a infinita paciência com

que Scholem, que se empenhara muito arduamente para conseguir para

Benjamin um pagamento pelo estudo do hebraico da parte da Universidade de

Jerusalém, permitiu-se ser posto de lado durante anos. Evidentemente ninguém

estava preparado para subsidiá-lo na única “posição” para a qual nascera, a de

um homme de lettres, de cujas perspectivas únicas nem os sionistas nem os

marxistas tinham, ou poderiam ter, consciência.

Atualmente o homme de lettres nos surpreende antes como uma figura

inofensiva e marginal, como se realmente equivalesse à figura do

Privatgelehrter, que sempre teve um toque cômico. Benjamin, que se sentia tão

próximo do francês que a língua se tornou para ele uma “espécie de álibi”

(Briefe, vol. ii, p. 505), provavelmente conhecia as origens do homme de lettres

na França pré-revolucionária, bem como sua extraordinária carreira na

Revolução Francesa. Em contraste com os escritores e literatos posteriores, os

“écrivains et littérateurs”, como até Larousse define os hommes de lettres, esses

homens, embora vivessem no mundo da palavra escrita e impressa e estivessem

cercados, acima de tudo, por livros, não eram obrigados nem se sentiam

dispostos a ler e escrever profissionalmente, para ganhar a vida. Ao contrário da

classe dos intelectuais, que oferecem seus serviços como especialistas e

funcionários ao Estado, ou à sociedade como diversão e instrução, os hommes de

lettres sempre se empenharam em se manter distantes tanto do Estado como da

sociedade. Sua existência material se baseava em rendas sem trabalho, e sua

atitude intelectual se fundava em sua decidida recusa a se integrarem social ou

politicamente. Na base dessa dupla independência, podiam-se permitir aquela

atitude de superior desdém que deu origem às observações depreciativas de La

Rochefoucauld sobre a natureza humana, à sabedoria mundana de Montaigne, à

mordacidade aforismática do pensamento de Pascal, à intensidade e abertura das

reflexões políticas de Montesquieu. Não posso aqui discutir as circunstâncias

que finalmente converteram no século xviii os hommes de lettres em

revolucionários, nem a forma como seus sucessores no século xix e xx se

dividiram entre a classe dos “cultivados”, de um lado, e a dos revolucionários

profissionais, de outro. Menciono esse pano de fundo histórico apenas porque

em Benjamin o elemento da cultura se combinou de modo único com o elemento

do revolucionário e rebelde. É como se, logo antes de sua desaparição, a figura

do homme de lettres estivesse destinada a se mostrar uma vez mais na plenitude

de suas possibilidades, embora — ou possivelmente porque — tivesse perdido

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