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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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Além disso, em sua atitude diante dos problemas financeiros, Benjamin não

era de modo algum um caso isolado. De certa forma, sua postura era típica de

toda uma geração de intelectuais judaico-alemães, embora provavelmente

ninguém se desse tão mal quanto ele. Sua base era a mentalidade dos pais,

homens de negócio bem-sucedidos que não faziam juízos muito elevados sobre

suas realizações pessoais e cujo sonho era o de que seus filhos fossem destinados

a coisas superiores. Era a versão secularizada da antiga crença judaica de que os

que “aprendem” — a Torá ou o Talmude, isto é, a lei de Deus — são a

verdadeira elite do povo e não devem ser incomodados com uma ocupação tão

vulgar como a de ganhar dinheiro ou trabalhar por ele. Isso não significa que,

nessa geração, não houvesse conflitos entre pais e filhos; pelo contrário, a

literatura de época está repleta deles, e se Freud tivesse vivido e empreendido

suas investigações num país e num idioma que não fosse o ambiente judaicoalemão

que fornecia seus pacientes, possivelmente nunca teríamos ouvido falar

de um complexo de Édipo. 12 Mas, como regra, esses conflitos se resolviam com

a alegação dos filhos acerca de sua genialidade ou, no caso dos numerosos

comunistas oriundos de lares abastados, de sua dedicação ao bem-estar da

humanidade — em qualquer caso, aspirando a coisas mais elevadas do que

ganhar dinheiro —, e os pais se mostravam mais do que dispostos a reconhecer

que esta era uma desculpa válida para não ganharem sua subsistência. Onde não

se faziam ou não se reconheciam tais alegações, era iminente a catástrofe.

Benjamin foi um caso: seu pai nunca reconheceu suas alegações, e as relações

entre eles eram extraordinariamente ruins. Um outro caso foi Kafka, que —

possivelmente por ser realmente algo como um gênio — estava totalmente livre

da mania de genialidade de seu meio ambiente, nunca alegou ser um gênio e

assegurava sua independência financeira com um emprego comum num

escritório de pagamentos de trabalhadores em Praga. (Suas relações com seu pai

evidentemente eram ruins do mesmo modo, mas por razões diferentes.) E ainda

assim, tão logo Kafka assumiu essa posição, viu nela a “partida de uma corrida

de suicidas”, como se estivesse obedecendo a uma ordem que dissesse “Você

tem de ganhar sua tumba”. 13

Para Benjamin, de qualquer forma, a mesada continuava a ser a única fonte

possível de renda, e depois da morte de seus pais, para conseguir um estipêndio

mensal, ele se dispôs, ou pensou que se dispôs, a fazer muitas coisas: estudar

hebraico por trezentos marcos mensais, se os sionistas achassem que isso lhes

traria algum bem, ou pensar dialeticamente, com todos os adornos das

mediações, por mil francos franceses, se não houvesse outra forma de fazer

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