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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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que Péguy lhe inspirara: “Nenhuma obra escrita jamais me tocou tão

intimamente e me proporcionou tal senso de comunhão” [Briefe, vol. i, p. 217].)

Bem, ele não conseguiu consolidar nada, e dificilmente teria conseguido. Foi

apenas no pós-guerra que os estrangeiros — e presumivelmente é assim que até

hoje todos os que não nasceram na França são chamados em Paris — puderam

ocupar “posições”. Por outro lado, Benjamin fora levado a uma posição que

realmente não existia em lugar algum e só depois poderia ser identificada e

diagnosticada. Era a posição no “topo de mastro”, de onde se poderia observar,

melhor do que de um porto seguro, os tempos tempestuosos, muito embora os

sinais aflitos sobre o “naufrágio” desse único homem que não aprendera a nadar,

com ou contra a corrente, dificilmente seriam percebidos — seja por quem

nunca se expusera a esses mares ou por quem conseguia se mover mesmo nesse

elemento.

Vista de fora, era a posição do escritor freelance que vive de sua pena;

contudo, como apenas Max Rychner parece ter notado, ele o fazia de um “modo

peculiar”, pois “suas publicações eram qualquer coisa, menos freqüentes” e

“nunca ficou totalmente claro [...] até que ponto podia contar com outros

recursos”. 11 As suspeitas de Rychner se justificavam sob todos os aspectos. Não

só havia “outros recursos” à sua disposição, antes de sua emigração, como por

trás da fachada do escritor freelance ele levava a vida consideravelmente mais

livre, embora constantemente ameaçada, de um homme de lettres cujo lar era

uma biblioteca que fora montada com extremo cuidado, mas de modo algum

entendida como instrumento de trabalho; consistia em tesouros cujo valor, como

freqüentemente repetia Benjamin, era demonstrado pelo fato de que não os lera

— uma biblioteca, pois, que tinha a garantia de não ser útil ou não estar ao

serviço de nenhuma profissão. Tal existência era algo desconhecido na

Alemanha, e quase igualmente desconhecida era a ocupação que Benjamin, só

porque tinha de sobreviver, dela retirava: não a ocupação de um historiador e

erudito da literatura, com a quantidade exigida de grossos volumes a seu crédito,

mas a de um crítico e ensaísta que considerava até mesmo a forma de ensaio

como vulgarmente extensa demais, e, se não fosse pago por linha, teria preferido

o aforismo. Certamente não ignorava o fato de que suas ambições profissionais

estavam dirigidas a algo que simplesmente não existia na Alemanha, onde,

apesar de Lichtenberg, Lessing, Schlegel, Heine e Nietzsche, os aforismos nunca

foram apreciados e as pessoas julgavam em geral que a crítica era algo

desrespeitavelmente subversivo que podia ser desfrutado — no máximo —

apenas na seção cultural de um jornal. Não foi casual que Benjamin tenha

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