23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

inúmeros cafés que delineiam as ruas, ao longo dos quais se move a vida da

cidade, o fluxo de pedestres. Até hoje, Paris é a única cidade que pode ser

comodamente percorrida a pé e, mais do que qualquer outra, sua animação

depende das pessoas que passam pelas ruas, de modo que o tráfego

automobilístico moderno ameaça, e não só por razões técnicas, sua própria

existência. A desolação de um subúrbio americano, ou dos bairros residenciais

de muitas cidades, onde toda a vida das ruas se concentra nas pistas e a pessoa

pode andar pelas calçadas, agora reduzidas a trilhas, por quilômetros a fio sem

encontrar um único ser humano, é o exato oposto de Paris. As ruas de Paris

realmente convidam todos a fazer aquilo que as outras cidades parecem permitir

com muita relutância apenas à escória da sociedade — a perambulação, o ócio, a

flânerie. Assim, já desde o Segundo Império, a cidade foi o paraíso de todos os

que não precisam correr atrás da subsistência, seguir uma carreira, alcançar um

objetivo — o paraíso, então, dos boêmios, e não só dos artistas e escritores, mas

de todos os que se reuniram a eles, por não conseguirem se integrar

politicamente — não tendo lar ou Estado — nem socialmente.

Sem levar em consideração esse pano de fundo da cidade, que se tornou uma

experiência decisiva para o jovem Benjamin, dificilmente pode-se entender por

que o flâneur veio a ser a figura-chave de seus textos. À medida que esse

vaguear determinava o ritmo de seu pensamento, talvez se revelasse mais

nitidamente nas peculiaridades de seu modo de andar, que Max Rychner

descreveu “ao mesmo tempo avançar e deter-se, uma estranha mescla de

ambos”. 10 Era o andar de um flâneur, e era tão extraordinário porque, como o

dândi e o esnobe, o flâneur tinha seu lar no século xix, uma era de segurança em

que os filhos das famílias de classe média alta tinham um rendimento garantido

sem terem de trabalhar e por isso não tinham motivos de pressa. E assim como a

cidade ensinou a Benjamin a flânerie, o estilo secreto de andar e pensar do

século xix, naturalmente suscitou nele também um gosto pela literatura francesa,

o que o apartou quase que irrevogavelmente da vida intelectual alemã usual. “Na

Alemanha, sinto-me totalmente isolado em meus esforços e interesses entre os

de minha geração, ao passo que na França há certas forças — os escritores

Giraudoux e, em especial, Aragon; o movimento surrealista — onde vejo atuar

aquilo que também me ocupa” — assim escreveu ele a Hofmannsthal em 1927

(Briefe, vol. i, p. 446), quando, tendo voltado de uma viagem a Moscou

convencido de que os projetos literários sob a bandeira comunista eram

inexeqüíveis, preparava-se para consolidar sua “posição de Paris” (Briefe, vol. i,

pp. 444-5). (Oito anos antes, mencionara o “incrível sentimento de irmandade”

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!