Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

francês que permitisse à pessoa prolongar uma conversa com ele por mais de umquarto de hora” (Briefe, vol. i, p. 445). Mais tarde, residindo em Paris comorefugiado, sua nobreza inata o impediu de desenvolver relações a partir deconhecimentos ligeiros — o principal era Gide — e de fazer novos contatos.(Werner Kraft — assim soubemos recentemente — levou-o para ver Charles duBos, que, devido ao seu “entusiasmo pela literatura alemã”, era uma espécie defigura-chave para os emigrantes alemães. Werner Kraft tinha as melhoresrelações — que ironia!) 8 Em sua resenha extraordinariamente judiciosa sobre asobras e cartas de Benjamin, e ainda sobre a literatura secundária, Pierre Missacobservou o quanto Benjamin deve ter sofrido por não ter recebido na França a“recepção” que lhe era devida. 9 Decerto isso é correto, mas seguramente não foiuma surpresa.Por mais exasperante e ofensivo que tudo isso pudesse ter sido, a cidade em sicompensava tudo. Seus bulevares, descobrira Benjamin desde 1913, sãoformados por casas que “não parecem feitas para se viver nelas, mas são comocenários de pedra para as pessoas andarem entre eles” (Briefe, vol. i, p. 56). Essacidade, onde a pessoa ainda podia passear em círculo em torno dos velhosportões, manteve-se o que foram outrora as cidades da Idade Média, solidamentemuradas e protegidas do exterior: um interior, mas sem a estreiteza das ruasmedievais, um intérieur ao ar livre generosamente planejado e construído, com oarco do céu como um majestoso forro por sobre ele. “Aqui, a coisa mais bela emtodas as artes e atividades é o fato de manterem o esplendor dos poucosremanescentes do original e natural” (Briefe, vol. i, p. 421). Na verdade, ajudamnosa adquirir novo brilho. São as fachadas uniformes, que se alinham nas ruascomo muros internos, que fazem com que a pessoa se sinta nessa cidade maisprotegida fisicamente do que em qualquer outra. As arcadas que unem osgrandes bulevares e oferecem proteção contra o tempo inclemente exerceram umfascínio tão grande sobre Benjamin que este se referia à sua projetada importanteobra sobre o século xix e sua capital simplesmente como “As arcadas”(Passagenarbeit); e esses caminhos de passagem são realmente como que umsímbolo de Paris, pois estão nitidamente dentro e fora ao mesmo tempo e, assim,representam sua verdadeira natureza sob a forma de uma quintessência. EmParis, um estrangeiro se sente em casa pois pode morar na cidade da mesmaforma como vive entre suas próprias quatro paredes. E assim como alguém moranum apartamento e o torna confortável, nele vivendo, ao invés de apenas usá-lopara dormir, comer e trabalhar, da mesma forma a pessoa mora numa cidadevagueando por ela sem intenção ou finalidade, com sua pausa assegurada pelos

inúmeros cafés que delineiam as ruas, ao longo dos quais se move a vida dacidade, o fluxo de pedestres. Até hoje, Paris é a única cidade que pode sercomodamente percorrida a pé e, mais do que qualquer outra, sua animaçãodepende das pessoas que passam pelas ruas, de modo que o tráfegoautomobilístico moderno ameaça, e não só por razões técnicas, sua própriaexistência. A desolação de um subúrbio americano, ou dos bairros residenciaisde muitas cidades, onde toda a vida das ruas se concentra nas pistas e a pessoapode andar pelas calçadas, agora reduzidas a trilhas, por quilômetros a fio semencontrar um único ser humano, é o exato oposto de Paris. As ruas de Parisrealmente convidam todos a fazer aquilo que as outras cidades parecem permitircom muita relutância apenas à escória da sociedade — a perambulação, o ócio, aflânerie. Assim, já desde o Segundo Império, a cidade foi o paraíso de todos osque não precisam correr atrás da subsistência, seguir uma carreira, alcançar umobjetivo — o paraíso, então, dos boêmios, e não só dos artistas e escritores, masde todos os que se reuniram a eles, por não conseguirem se integrarpoliticamente — não tendo lar ou Estado — nem socialmente.Sem levar em consideração esse pano de fundo da cidade, que se tornou umaexperiência decisiva para o jovem Benjamin, dificilmente pode-se entender porque o flâneur veio a ser a figura-chave de seus textos. À medida que essevaguear determinava o ritmo de seu pensamento, talvez se revelasse maisnitidamente nas peculiaridades de seu modo de andar, que Max Rychnerdescreveu “ao mesmo tempo avançar e deter-se, uma estranha mescla deambos”. 10 Era o andar de um flâneur, e era tão extraordinário porque, como odândi e o esnobe, o flâneur tinha seu lar no século xix, uma era de segurança emque os filhos das famílias de classe média alta tinham um rendimento garantidosem terem de trabalhar e por isso não tinham motivos de pressa. E assim como acidade ensinou a Benjamin a flânerie, o estilo secreto de andar e pensar doséculo xix, naturalmente suscitou nele também um gosto pela literatura francesa,o que o apartou quase que irrevogavelmente da vida intelectual alemã usual. “NaAlemanha, sinto-me totalmente isolado em meus esforços e interesses entre osde minha geração, ao passo que na França há certas forças — os escritoresGiraudoux e, em especial, Aragon; o movimento surrealista — onde vejo atuaraquilo que também me ocupa” — assim escreveu ele a Hofmannsthal em 1927(Briefe, vol. i, p. 446), quando, tendo voltado de uma viagem a Moscouconvencido de que os projetos literários sob a bandeira comunista eraminexeqüíveis, preparava-se para consolidar sua “posição de Paris” (Briefe, vol. i,pp. 444-5). (Oito anos antes, mencionara o “incrível sentimento de irmandade”

francês que permitisse à pessoa prolongar uma conversa com ele por mais de um

quarto de hora” (Briefe, vol. i, p. 445). Mais tarde, residindo em Paris como

refugiado, sua nobreza inata o impediu de desenvolver relações a partir de

conhecimentos ligeiros — o principal era Gide — e de fazer novos contatos.

(Werner Kraft — assim soubemos recentemente — levou-o para ver Charles du

Bos, que, devido ao seu “entusiasmo pela literatura alemã”, era uma espécie de

figura-chave para os emigrantes alemães. Werner Kraft tinha as melhores

relações — que ironia!) 8 Em sua resenha extraordinariamente judiciosa sobre as

obras e cartas de Benjamin, e ainda sobre a literatura secundária, Pierre Missac

observou o quanto Benjamin deve ter sofrido por não ter recebido na França a

“recepção” que lhe era devida. 9 Decerto isso é correto, mas seguramente não foi

uma surpresa.

Por mais exasperante e ofensivo que tudo isso pudesse ter sido, a cidade em si

compensava tudo. Seus bulevares, descobrira Benjamin desde 1913, são

formados por casas que “não parecem feitas para se viver nelas, mas são como

cenários de pedra para as pessoas andarem entre eles” (Briefe, vol. i, p. 56). Essa

cidade, onde a pessoa ainda podia passear em círculo em torno dos velhos

portões, manteve-se o que foram outrora as cidades da Idade Média, solidamente

muradas e protegidas do exterior: um interior, mas sem a estreiteza das ruas

medievais, um intérieur ao ar livre generosamente planejado e construído, com o

arco do céu como um majestoso forro por sobre ele. “Aqui, a coisa mais bela em

todas as artes e atividades é o fato de manterem o esplendor dos poucos

remanescentes do original e natural” (Briefe, vol. i, p. 421). Na verdade, ajudamnos

a adquirir novo brilho. São as fachadas uniformes, que se alinham nas ruas

como muros internos, que fazem com que a pessoa se sinta nessa cidade mais

protegida fisicamente do que em qualquer outra. As arcadas que unem os

grandes bulevares e oferecem proteção contra o tempo inclemente exerceram um

fascínio tão grande sobre Benjamin que este se referia à sua projetada importante

obra sobre o século xix e sua capital simplesmente como “As arcadas”

(Passagenarbeit); e esses caminhos de passagem são realmente como que um

símbolo de Paris, pois estão nitidamente dentro e fora ao mesmo tempo e, assim,

representam sua verdadeira natureza sob a forma de uma quintessência. Em

Paris, um estrangeiro se sente em casa pois pode morar na cidade da mesma

forma como vive entre suas próprias quatro paredes. E assim como alguém mora

num apartamento e o torna confortável, nele vivendo, ao invés de apenas usá-lo

para dormir, comer e trabalhar, da mesma forma a pessoa mora numa cidade

vagueando por ela sem intenção ou finalidade, com sua pausa assegurada pelos

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