Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
época, o qual o governo francês, ansioso para agradar à Gestapo,invariavelmente recusava aos refugiados alemães. Em geral, isso nãoapresentava grandes dificuldades, pois havia um caminho bem conhecido, quenão era vigiado pela polícia francesa de fronteira, relativamente curto e de modoalgum muito árduo, que tinha de ser feito a pé pelas montanhas até Port Bou.Contudo, para Benjamin, que aparentemente tinha problemas cardíacos (Briefe,vol. ii, p. 841), mesmo o passeio mais curto significava um grande esforço, edeve ter chegado num estado de grave exaustão. O pequeno grupo de refugiadosa que ele se juntara alcançou a cidade da fronteira, para ali saber que a Espanhafechara suas fronteiras naquele mesmo dia e que os oficiais não aceitavam vistosexpedidos em Marselha. Supostamente os refugiados teriam de voltar à Françano dia seguinte, pelo mesmo caminho. Durante a noite, Benjamin se matou, como que os oficiais da fronteira, impressionados com o suicídio, permitiram queseus companheiros seguissem até Portugal. Poucas semanas depois suspendeu-senovamente o embargo dos vistos. Um dia antes, Benjamin teria passado semnenhum problema; um dia depois, as pessoas em Marselha saberiam que, demomento, era impossível passar pela Espanha. Apenas naquele dia particular foipossível a catástrofe.
ii. os tempos sombriosA pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquantoviva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero pelo seudestino [...] mas com sua outra mão ela pode anotar o que vê entre asruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal, estámorto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.Franz Kafka, Diários, apontamento de 19 de outubro de 1921Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por subir no topode um mastro que já se desmorona. Mas dali ele tem uma oportunidadede fazer sinais que levem à sua salvação.Walter Benjamin, numa carta a Gerhard Scholem datada de 17 de abrilde 1931Com freqüência uma era marca com seu selo mais distintamente os que menosforam influenciados por ela, os que estiveram mais distantes dela e, portanto,mais sofreram. Assim foi com Proust, com Kafka, com Karl Kraus e comBenjamin. Seus gestos e o modo como sustinha a cabeça ao ouvir e falar; aforma como se movia; suas maneiras, mas principalmente seu estilo de falar, atéa escolha das palavras e a forma de sua sintaxe; por fim, seus gostosabsolutamente idiossincráticos — tudo isso parecia tão antiquado como setivesse vindo à deriva do século xix ao xx, como alguém que é levado à praia deuma terra estranha. Algum dia sentiu-se ele à vontade na Alemanha do séculoxx? Há razões para se duvidar disso. Em 1913, quando muito jovem visitou aFrança pela primeira vez; depois de poucos dias as ruas de Paris eram “quasemais familiares” (Briefe, vol. i, p. 56) a ele do que as ruas costumeiras deBerlim. Pode até ter sentido então, e certamente sentiu vinte anos depois, oquanto a viagem de Berlim a Paris equivalia a uma viagem no tempo — não deum país a outro, mas do século xx para o século xix. Era a nation par excellencecuja cultura determinara a Europa do século xix, e para a qual Haussmannreconstruíra Paris, “a capital do século xix”, como a chamaria Benjamin. EssaParis por certo ainda não era cosmopolita, mas era profundamente européia, eassim já desde meados do século anterior se oferecera com uma naturalidadeincomparável como um segundo lar a todas as pessoas sem lar. Nem a acentuadaxenofobia de seus habitantes, nem os deliberados embaraços postos pela polícialocal jamais foram capazes de alterar isso. Muito antes de sua emigração,Benjamin sabia como era “muito excepcional fazer o tipo de contato com um
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ii. os tempos sombrios
A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquanto
viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero pelo seu
destino [...] mas com sua outra mão ela pode anotar o que vê entre as
ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal, está
morto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.
Franz Kafka, Diários, apontamento de 19 de outubro de 1921
Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por subir no topo
de um mastro que já se desmorona. Mas dali ele tem uma oportunidade
de fazer sinais que levem à sua salvação.
Walter Benjamin, numa carta a Gerhard Scholem datada de 17 de abril
de 1931
Com freqüência uma era marca com seu selo mais distintamente os que menos
foram influenciados por ela, os que estiveram mais distantes dela e, portanto,
mais sofreram. Assim foi com Proust, com Kafka, com Karl Kraus e com
Benjamin. Seus gestos e o modo como sustinha a cabeça ao ouvir e falar; a
forma como se movia; suas maneiras, mas principalmente seu estilo de falar, até
a escolha das palavras e a forma de sua sintaxe; por fim, seus gostos
absolutamente idiossincráticos — tudo isso parecia tão antiquado como se
tivesse vindo à deriva do século xix ao xx, como alguém que é levado à praia de
uma terra estranha. Algum dia sentiu-se ele à vontade na Alemanha do século
xx? Há razões para se duvidar disso. Em 1913, quando muito jovem visitou a
França pela primeira vez; depois de poucos dias as ruas de Paris eram “quase
mais familiares” (Briefe, vol. i, p. 56) a ele do que as ruas costumeiras de
Berlim. Pode até ter sentido então, e certamente sentiu vinte anos depois, o
quanto a viagem de Berlim a Paris equivalia a uma viagem no tempo — não de
um país a outro, mas do século xx para o século xix. Era a nation par excellence
cuja cultura determinara a Europa do século xix, e para a qual Haussmann
reconstruíra Paris, “a capital do século xix”, como a chamaria Benjamin. Essa
Paris por certo ainda não era cosmopolita, mas era profundamente européia, e
assim já desde meados do século anterior se oferecera com uma naturalidade
incomparável como um segundo lar a todas as pessoas sem lar. Nem a acentuada
xenofobia de seus habitantes, nem os deliberados embaraços postos pela polícia
local jamais foram capazes de alterar isso. Muito antes de sua emigração,
Benjamin sabia como era “muito excepcional fazer o tipo de contato com um