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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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e a área de desastres” de sua própria obra, ao escrever que “um entendimento da

produção [de Kafka] envolve, entre outras coisas, o simples reconhecimento de

que ele foi um fracasso” (Briefe, vol. ii, p. 614). O que Benjamin disse de Kafka

com um talento tão único aplica-se igualmente a ele: “As circunstâncias do seu

fracasso são multifacetadas. Fica-se tentado a dizer: uma vez certo do fracasso

final, tudo se resolvia para ele en route como num sonho” (Briefe, vol. ii, p.

764). Ele não precisava ler Kafka para pensar como Kafka. Quando “O foguista”

ainda era tudo o que tinha lido de Kafka, já citara a frase de Goethe sobre a

esperança em seu ensaio sobre Afinidades eletivas: “A esperança passou por

sobre suas cabeças como uma estrela que cai do céu”; e pode-se ler a frase com

que conclui o estudo como se fosse da autoria de Kafka: “Só por consideração

aos desesperançados é que nos foi dada a esperança” (Schriften, vol. i, p. 140).

Em 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin, que estava prestes a emigrar

para os Estados Unidos, tirou a vida na fronteira franco-espanhola. Houve várias

razões para isso. A Gestapo tinha confiscado seu apartamento em Paris, onde

estavam sua biblioteca (ele conseguira retirar da Alemanha “a metade mais

importante”) e muitos de seus manuscritos, e tinha razão para se preocupar

também com os outros que, através dos bons serviços de George Bataille, tinham

sido guardados na Biblioteca Nacional, antes de sua fuga de Paris para Lourdes

na França não ocupada. 7 Como viveria sem uma biblioteca, como poderia ganhar

a vida sem a imensa coleção de citações e excertos em seus manuscritos? Além

do mais, nada o atraía para os Estados Unidos, onde, como costumava dizer, as

pessoas provavelmente não achariam nenhuma outra utilidade para ele a não ser

carregá-lo para cima e para baixo, através do país, exibindo-o como o “último

europeu”. Mas a causa imediata para o suicídio de Benjamin foi um golpe

incomum de má sorte. Devido ao acordo de armistício entre a França de Vichy e

o Terceiro Reich, os refugiados da Alemanha hitlerista — les refugiés provenant

d’Allemagne, como na França se referiam oficialmente a eles — estavam sob o

perigo de serem embarcados de volta para a Alemanha, presumivelmente apenas

se fossem opositores políticos. Para salvar essa categoria de refugiados — que,

deve-se notar, nunca incluiu a massa não política de judeus que posteriormente

se demonstrou serem os mais ameaçados de todos —, os Estados Unidos

distribuíram uma série de vistos de emergência, através de seus consulados na

França não ocupada. Graças aos esforços do Instituto em Nova York, Benjamin

estava entre os primeiros a receber o visto em Marselha. Também obteve

rapidamente um visto de trânsito espanhol, que lhe permitia ir até Lisboa e lá

tomar um navio. Contudo, não tinha um visto de saída francês, ainda exigido na

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